segunda-feira, dezembro 24, 2007


[...]
O silêncio congela o mundo, faz com que seja possível para mim o trânsito dentro dele.
Em silêncio observo sua oscilação em partir: quase ia ontem, e hoje, graças a Deus ou ao Demônio, acorda um tanto melhor.
A absurda cor do mar se cristalizando embaixo do sol.
Acordo tarde, durmo tarde, sensação de que sequer dormi.

Há anos engulo minha disposição tamanha de sair pelo mundo gritando seu nome, santo e doce é o teu nome que de súbito descubro: quase não o pronuncio mais. Por medo, talvez.
Estou comendo capim e vendo bolas de assopro pelo ar. É a infância? O desamor? Não digo nada: leio Carlos Drummond de Andrade.
O excesso de tudo, cara, o excesso...
E você resiste, você resiste.
De repente suspira e faz que ri mas fecha os olhos antes murmurando: odeio perder cabelos...
Posso contar quantas vezes por dia te ouço resmungar: odeio isso, odeio aquilo.
Você resiste.
Soberano, ora longe ora perto, num instante quase acoplado à minha pele, respondendo monossilábico sobre todas aquelas histórias que nunca consegui esclarecer. [...]

****

Pra tornar tudo leve. As bolas de assopro fazem festa no céu.
Espero a morte e não tô nem aí.
Dedo cortado ao tentar abrir uma garrafa de vinho.
A vida inteira pra vê-lo de perto.
A terra - flor de fogo./ O homem decide o seu destino... / Que não dirão de nós a fera e a estrela?
Pouco sei.
Que minha cabeça dói quando amanhece tão nó nas vértebras assim.
Que às vezes é melhor estar de olhos fechados pras imagens.
Os séculos de poeira atiçando a vontade do corpo de ser somente pó.
Tua voz enchendo de ar a sala.
Solto as bolas de assopro coloridas. De duas em duas pela janela.
É minha festa solitária.
Você vai me ver anos e anos antecipado. Lá de Buenos Aires, parar de cantar um minuto e pensar em mim. Me fotografar. Como se naquele tempo já fôssemos amantes. E você pudesse, no meio do palco, sentir uma falta aguda de mim.
Te olhando cá do Brasil.
Sozinho na sala. Sentindo saudades de ti.
Vendo-nos, todos os mortos, que dirão?
Eu pouco me importo. Que me deixem em paz os poetas.
Quero apenas nele pensar.
[...]

terça-feira, novembro 27, 2007

A fome de ser você entortou os ladrilhos ou serão meus olhos vesgos? Havia água borrada de espuma de sabão e sujeira, molhei os sapatos sem dar por mim.

Toda vez que viajo me desocupo de ser você, fico inteira nos olhos dos objetos, e se eles têm raios de luz ou sombra me perco, não mais sei.

Voltar pra casa é me deixar na janela do ônibus, do carro, do avião, é te reencontrar, sistemático, retornando à rotina, às contas, ao trabalho.

Se não sou você nada faço.

Eu não existo no caminho, nas cores corretas e vivas dos ladrilhos.

Ser você me endireita o tanto espaço entre o que deixei de ser por acidente e o que, não por livre escolha, não voltarei mais a ser.

terça-feira, novembro 20, 2007



PALAVRA NÃO É PRESENTE

Minha vida, amor meu, o claro sol do dia, que está um pouco quente, o céu de um azul inacreditável com nuvens esparsas, tudo se torna mensagem nítida para que eu comprove: você é um acontecimento único em minha vida. Agora neste exato momento vou recordando toda nossa história e fico cada diamais apaixonado por você. Como descrever o encantamento que uma paixão pode causar na gente, que muda a nossa vida numa perspectiva inesperada e exclusiva? Não dá, eu sei. Dos gestos, da fala, de cada minúcia que vamos percebendo e descobrindo na pessoa amada, até as idéias políticas, literárias etc; assim quanto mais eu te percebo mais profundamente te amo. O seu sorriso, minha vida, seu cabelo caindo no rosto, quando você vai se soltando e se tornando mais menina e lembra as brincadeiras e frases da infância; é incrível como a vida é simples, não fácil, é verdade, e nós complicamos tudo. Ontem, aqui em casa, eu estava te observando e vendo como somos amigos íntimos, como nos divertimos um com o outro e mesmo quando brigamos, ficamos chateados um com o outro sabemos que ficamos porque damos uma importância imensa a tudo que o outro significa.

Sua presença em minha vida me transformou: minha espiritualidade se tornou mais aguda, meus textos amadureceram, eu amadureci muito, a descoberta total do outro, um trabalho que amo proporcionado por você e tantas outras coisas. Nas questões éticas você me ajudou e ajuda tanto!

O ato de conhecer, que é um ato de amor, eu tenho descoberto em você, na nossa relação cotidiana, na entrega total de um para o outro, aquilo que é inexprimível, por mais poderosa e divina que a palavra seja, então como dizer tudo isso numa simples carta, que é na verdade um humilde presente para o seu aniversário? Palavra não é presente, eu sei. Também sei que você não gosta de comemorar o seu aniversário, e esse será o seu terceiro aniversário que passo contigo. Lembra do primeiro em que não estávamos juntos? Juntos como estamos agora.

Desde o lançamento de Urbanos, eu me lembro claramente daquela noite,você sempre foi para mim uma mulher misteriosa, uma mulher que eu desejava sempre saber mais, e isso foi acontecendo lentamente. Hoje não me vejo sem você, nunca! Hoje você é a minha vida.
Então feliz aniversário, Minha Vida!

Do seu claudicante, João Batista.

Te amo!!!

segunda-feira, novembro 12, 2007

Caminhando entre nevoeiros intensos e manhãs de clara luminosidade passeia minha saudade que pergunta insistentemente ao clarão da lua cheia: onde você está? Tenho o costume de andar pelo asfalto, mas achando que percorro flocos de algodão.O brilho dos seus olhos negros se mistura ao pó do asfalto e faz brotar borboletas negras que bailam a cada nascer do sol... No meio dessa roda gigante de sentimentos e vontades meu espírito repousa vagarosamente ao recordar de um beijo seu. Parafraseando Pessoa: “o meu olhar é nítido como um girassol”, acostumo-me a sentir seu cheiro em todo lugar...
(mia sorella minore)

terça-feira, outubro 30, 2007


Uma calçada

Vim pensando nisto: felicidade demais quando não mata, aleija.
Olha as flores como ficaram tortas, olha as flores, meu amor.
Os beijos açucarados, a carne mole.
Ou nem isso.
Andar faz mal à mente.
Penso: um céu de cinza tenso, entre prata e marinho e nuvens ciganas de um lado pro outro, entretendo-nos com suas danças. Penso: pimentas. Amarelas, verdes, vermelhas. Espremidas em azeite dentro das garrafas reluzindo na beira da estrada.
Onde?
Quando?
Que nada!
Tudo mentira.
Penso é no teu sexo.
Brinco que penso em nada sério. Disfarço. Sento na calçada da casa.
Aquela-essa-esta casa antiga da Vitória.
Bebo tua saliva morna de boca ainda agora mesmo acordada. Fecho os olhos durante o beijo para ver se penso menos, des-penso o pensamento de hoje-sempre, mas não tem jeito, percebo: penso no teu sexo de novo. Mesmo te sabendo puro sono, eu: dor de cabeça leve na fronte.
Acendemos cigarros.
Sentados na calçada da casa antiga.
A nicotina ameniza na cabeça tudo que é chato, inútil. Essas coisas tão previsíveis do mundo.
Vim pensando em tudo isto. Leve-solta do teu lado.
Volto a buscar o foco outra vez.
Alguns planos contigo. Casa, viagens, livros, bebês.
Coisas assim: pequenas. Mas luminosas. Como o sol na calçada da casa antiga da Vitória. Esta-essa-aquela.
Desimporta.
Andar faz bem à mente.

segunda-feira, outubro 15, 2007

Outras Moradas, antologia de contos do Banco Capital, com Állex Leilla, Adelice Souza, Marcus Vinícius Rodrigues, Aleilton Fonseca e Renata Belmonte

Lançamento de Outras Moradas

TRECHOS DO LIVRO
A casa temperada de sol

Állex Leilla

As coisas não são sentidas nem ditas por mero acaso. Os rumores de que ela estava indisposta porque lia um livro de Camus saltavam pelos cantos do hospital. Pairavam até na boca do arquivista que dissera na tarde anterior só ter lido uma biografia sobre o grande gênio francês. Falou assim um tanto empolado: grande gênio francês, com aquele tom desagradável, irônico, dos que acham todas essas coisas – leitura, afetação, sensibilidade – risíveis, apenas risíveis e, por isso mesmo, dispensáveis.
Isabel, ele pensou em definir de uma vez aquela história, você já está passando da hora de morrer.
Podia?
Estremeceu, balançando os ombros.
Veja bem: ser homem não é fácil, meus caros, não é nada fácil, vá entender.
No refeitório, podia-se ouvir, entre um comentário e outro dos médicos, preocupados com detalhes técnicos de cirurgias, atendimento, prazos, medicação, um escapar à toa de impressões acerca dela, de Isabel:
– Você acredita que ela disse à supervisora que não poderá vir trabalhar por causa de um livro que está lendo?
– De Camus?
– Sim, de Camus... Quer dizer, o berçário fica às moscas por causa de um livro de Camus... Formidável...
– Ah, eu não espero mais nada dessa moça... Sinceramente...
[...]
Toda manhã pensar nisso e, no correr do dia, sem coragem, esquecer.
Ele fazia a barba no automático. Era preciso se apressar. Na hora do enxágüe, fechava os olhos, pausa necessária para reter a imagem perfeita da felicidade: Isabel tranqüila, de camiseta e calcinhas brancas, pés descalços, cabelos presos, subindo as escadas da Casa Temperada de Sol. Ou ela lavando os pratos e perguntando, tão graciosa, por que você só usa as camisas por fora das calças? Ou ainda: ela de bruços na cama. Líquida na amplidão da cama. Olhos caçando ternura sem saber que caçavam mesmo isso: ternura. Queria congelar aquele instante num potinho de vidro, esquartejar o instante em mil pedacinhos de luz, feito vitrais ou interior de caleidoscópio, para poder, séculos mais tarde, quando já estivesse de horas contadas, moribundo num leito de hospital – podia ser até mesmo aquele, ao qual ele dirigia tão mal e subjetivamente, por que não? – tirar o vidrinho do bolso e espiá-la derradeiramente: vítrea, cada parte da pele transformada em mil partezinhas da pele; cada brilho do olho, uma infinidade de brilhos do olho; mais calor que corpo; mais cristal que palavras. Era possível retê-la tão multifacetada assim?
Caramba, precisava se decidir logo. Ou ficava com Isabel e sua inaptidão para a vida ou...
Quer dizer, não, assim não. Só de pensar que estava chamando a mulher de sua vida de “inapta” lhe vinha um calafrio.
Haveria de ser sempre assim: avança e retrocede, avança e retrocede, como num filme em que se perdera a mão?
Pois é. É a vida, não?
Realmente?
Repensou melhor: ou a aceitava sua e, ao mesmo tempo, da vaguidão, das estrelas, ou a mandava ao inferno duma vez. [...]
***
Uma rua sob as árvores

Marcus Vinícius Rodrigues

— Mora gente aí, mãe?
A menina enfiava a cabeça por entre as grades do portão, curiosa. Apontou a estátua de mármore no centro da varanda, uma deusa grega, e perguntou alguma coisa sobre o anjinho que puxava um pano que mal cobria a mulher. Sua mãe poderia ter dito que não era um anjo, era o próprio deus Eros brincado com a deusa Afrodite. Também poderia ter falado dos dois leões cinza que seguravam postes de luz na parte de baixo da escada. Lúcia não disse nada. Ela ainda estava presa à primeira pergunta, que a arrastou para muito longe no passado, quando outras crianças perguntavam a mesma coisa.
— Aí não mora ninguém.
Era isso que ela dizia pro irmão quando ele perguntava a mesma coisa. Sempre que podiam sair do prédio para a rua, passavam pela frente da casa. Nunca tinha ninguém, mas estava sempre tão limpa e arrumada. Não era como outras casas da rua, destruídas pelo tempo. Do lado mesmo ficava uma assim, que mais parecia um depósito. Outras casas viraram museus. João vivia pedindo para entrar na casa, mas ela não deixava. Era mais velha. Sabia ser responsável. E o irmão só tinha essas idéias por causa de André.
— É claro que mora gente aí. Eu já vi. Outro dia entrou um carro. Lá de casa eu vi.
André morava num prédio mais próximo e até podia ter visto mesmo. Lúcia não se rendia.
— Claro que entrou um carro. A casa tem dono, seu bobão, mas ele não mora aí.
Essa era uma conversa de todos os dias, na vinda da escola, na hora de ir comprar pão, na ida à sorveteria da Graça. Ela defendia que a casa era deserta apenas para poder se imaginar dona de tudo. Adorava os arcos que se formavam no alto das colunas da varanda. Adorava a Afrodite e seu Eros. Só não gostava dos leões. Um dia vou mandar tirar esses leões, ou pelos menos mandar pintar de branco. Ela achava que a casa devia ser toda branca e não aquela cor meio rosinha meio bege. A única cor seria daqueles vidros no alto das janelas de cima tão vermelhos que chega doía ver. A casa seria branca como um palácio das Arábias, como o da princesa Jasmim. Ela seria a princesa desse palácio. Desde pequena sonhava assim. Quando conheceu André, com sua pela morena, viu na hora que ele podia ser o príncipe mágico dos seus sonhos, como Simbá ou como Aladim. Mas ele era tão bobo. Era quase um ano mais velho que ela, mas parecia ter a idade de João. Os dois juntos eram intratáveis. Foi André que ensinou João a andar olhando para cima. Os dois seguravam nela e iam andando e olhando para o sol entre as árvores que cobriam a rua. Apostavam pra ver que não chorava da claridade e nem tropeçava na calçada. Meninos. [...]
***
O cego e eu
Adelice Souza

Eu andava distraída, pela alameda das árvores, a caminho de casa, quando vi o cego. Ele tentava atravessar a rua bem em frente à antiga casa onde eu morara. Balbuciava algo quando eu me aproximei no intuito de ajudá-lo a chegar ao outro lado da rua. Falava alto, gesticulava, balançava a bengala no ar, agitada, como se quisesse bater em alguém invisível que estava à sua frente, como se quisesse se defender deste outro. Foi neste momento que percebi que o pobre cego ouvia vozes, como um oráculo às avessas, profetizando destinos ruins, seu caos. Quis dizer-lhe que não havia ninguém ali. Mas não podia: ver a dor do cego na sua luta com o que inexiste, deixou em mim um estado silencioso de perplexidade. Não podia fazer mais nada. Ele conversava com o vazio, gritava com alguém que não existia. Não consegui seguir adiante, era um domingo lindo de sol, eu voltava da praia na minha caminhada matinal e o meu rumo foi obscurecido por aquela presença cega. Porventura haveria uma forma que eu pudesse lhe dizer que não havia ninguém ali a incomodá-lo, mas talvez não estivesse ao seu alcance acreditar em mim, crer no que os meus olhos viam e negar o que ele mesmo ouvia. Eu, também convicta em meus princípios, intuições e sensações, não deixaria me levar pela percepção de um estranho, mesmo que este estranho tivesse olhos e eu não. Ele estava certo, eu estava certa e nenhum dos dois podia fazer nada. Ele queria ver alguém ali, a dor era a dele, o gozo era o dele, a falta preenchida pelas vozes e pelas imagens era dele. Isso não era problema meu, aceitei. [...]

quinta-feira, outubro 04, 2007


[...] O pior de tudo é que não há cheiros e quase se pode sentir Deus. Eu quero andar e não sou movimento. Ágeis são os arbustos, são as nódoas, são as faltas de cheiros, meu corpo não.
Primeiro me dei conta disso – do corpo – que ruía a cada quarto de hora, depois percebi aterrorizado as formigas, rodeando-me como se faz com o alimento. Histérico, nos instantes iniciais ainda achei que reuniria forças onde quer que fosse pra quebrar a inércia, vencer.
Não consegui.
Tua mão veio viva afastando os insetos de mim. Limpou um resto mínimo de sangue, pôs rosas e perfume e me vestiu com um manto de cetim claro.
Ri, grato a ti por tanta generosidade, saiba que estarei sempre, e achei teu pranto extremamente belo caindo em meu rosto morto. Devia ser quente a tua dor e fazia a das outras pessoas indiferente, nula. A milímetros de mim, você arfava em desespero. Não te senti como antes, minha faculdade consistiu no verbo ver, segunda conjugação, transitivo direto. Não lembro mais...
Vi você me guardar no vão e a madeira comer minha liberdade.
Falo como corpo porque corpo preso fui depositado.
Os grãos de areia, as velas, os vermes. O regresso. Não seria exatamente areia, mas barro pútrido, enojante.
Imaginava que o alimento fosse vivo, que cada mastigar sofrido fosse uma alegria de transformação próxima. Mas, não, a dor de ser absorvido é total, é cruel e leva parte dos sentidos. Abomino-me em retalhos. Eu me odeio mordido, rasgado, mastigado, comido. Pernas de barata, pêlos, gosma, meus dentes!
Nenhum cheiro exala, nenhum formigamento. Meu pênis, minhas mãos. Eu não conhecia esses tipos de vermes, só aqueles que levam parte do joelho... lia sobre bichos que dão em água parada, matava muitos ratos quando tinha dez an.....h! Jesus! O cheiro morno da virilha pra sempre perdido... minha unha caindo vagarosa na madeira... minha boca, eu não tenho boca!
É preciso um cigarro, um café.
Um choque elétrico...
Ainda faltam as veias... Ali, falta parte do nariz e um resto de coxa... E essa posta de carne verde, aguada, donde fazia parte? O sangue endurecido. O sangue é um requinte, quem virá me sugar? Eu me contorço, não sei do tempo.
Deve ser longo, mas eu não o sei. Incho. É o inconformismo? Eu não voltaria a comer se tivesse novamente boca, dentes, língua, mas ainda assim... quero meu corpo!
Tapa na cara.
Dentes rolando.
Baba.
Quero meu corpo.
Escuridão.
Por favor, me soltem, me deixem...
Um corte vertical no planeta. Que todos sangrem, que se fodam, que não reste migalhas de gente.
Não é possível... então sou isso?
Corro.
Carne moída.
Odeio. Odeio. Odeio.
Subirei no topo.
Picadinho.
Mal, mal, mal.
Formigas estranhas, estranhas.
Quero tudo no lugar de antes!
Misérias se multiplicam. Demônio, demônio...
Em toda parte: baratas.
São os bichos que mais odeio. Eu que comia vegetais! Eu, que não-andava-descalço-debaixo-do-sol-por-muito-tempo. Eu com minhas rugas.
Eclipsado.
De mal com Deus.
E com Jesus Cristo.
Eu corro.
Que se fodam, desgraçados!
A mancha escura no meu quadril. Minha pele, minhas nádegas, onde o Vic irá deslizar?
Pode ser um câncer, cara.
Eu tinha medo de câncer no pulmão.
Só conseguia dormir depois de ouvir o Morrissey cantar alguma música, qualquer coisa servia, a caixa de som juntinho do meu ouvido, pra mim e somente pra mim.
Meus olhos eram negros... sangue AB, Rh +. Herança do meu pai.
Minha mãe nunca virá.
O banquete.
Água-luz-sabão.
Um dia uma puta me seguiu no Leblon. Olhava pra trás lhe sorrindo, quando por fim entendi: um homem, um homem debaixo da podre fantasia de se fazer exageradamente mulher.
Não me encantavam homens assim.
Mas tudo bem, tudo bem, tudo bem.
Não vou chorar mais.
Que se danem os cílios, que se danem os cabelos.
Posso sorrir um pouco.
Não me apavorem.
Dancem comigo. Um tango, ou dança antiga de ciganos.
Boceta! Boceta!
Por quê?
Eu quero meu corpo!
Macho meu ele foi, homem a quem chamei de amigo.
Não suporto mais esse crânio exposto.
Por favor, um lenço. Lilás.
Um cara me esmurrou no peito, uma vez...
Galeão, Santos Dumont. O barulhos de seres metálicos pelo ar.
Jacarepaguá.
Vozes em alto-falantes.
Passageiros com destino ao inferno, com escala no desespero e na miséria profunda, por favor, dirijam-se ao portão de embarque, e boa viagem.
Arame farpado.
Pois vou dar o troco pra aquele otário.
Irritação no estômago.
Tome a limonada, meu filho...
Não há.
Pode ser um sonho.
Vic, me espere na saída da rua, passo logo que a aula acabar.
Ele estudava língua alemã e amava escritores franceses.
O tempo. O tempo. O tempo.
A chuva podre sobre as cascas das frutas. Sobre as rosas brancas. Sobre os remédios.
Me ofertam flores. Agora vou mesmo chorar... flores pra quê, meu avô?
A primavera me dá saudades, o leite me dá saudades. Oh, Deus, já não tenho nada!
Ossos.
Uma casa bonita, cheia de espaços.
O momento mágico de desgrudar do corpo dele e adormecer.
Sítios. Aeroportos. Calçadas. A corrente fria na cara. Copacabana-princesinha-do-mar. Gozo, esperma, fluídos. Línguas. Espáduas. Coxas. Ânus. Pai-nosso-que-estais-no-céu-santificado-seja-o-vosso-nome. E flores, flores, flores. Vozes que pedem que eu seja recebido ao lado de Deus.
Eu não quero...
Jesus, provavelmente, vai estar lá...
Sentado à direita...
Só de pensar no rosto dele, nos cabelos compridos e negros...
O orgulho católico...
Eu não quero.
Quanto sétimos dias virão?
Vida.
Mangueira-estação-primeira.
Réstias, dores.
Gostava de ouvir samba. Mas não sabia sambar.
De punk, e rock anos 80.
Odiava feijoada.
De trepar a noite inteira.
Te foder de todos os jeitos.
Porque você, eu sabia, era meu.
Fosforescência.
O branco captado por uma gota. Estreito, suando.
O branco dos torpores. Uma chama a me rondar. Quem? O quê?
Um único movimento: a única cor. E as portas abertas por ela, e o vento fechando-as.
Ver é quase uma paz, mas há muito mormaço entre mim e as formas.
Pois eu estou dissolvido. Sem chão, sem tempo.
As nuanças me perseguem.
Não, não façam orações pra mim. Ninguém sabe do que preciso.
Quero é meu corpo. Um beijo e... oh, vão pro inferno com esses pedidos!
[...]
(Henrique, romance, pp. 11-14)

segunda-feira, setembro 17, 2007

E digo que tem sido isto: pequenos pedaços de sono, eu me alargando, a cama se alargando, os lençóis se alargando, o mundo, espaços enormes, brancos, ameaçadores, vazios, que volta e meia me fazem tão mal.
Sim, tão somente isto: a ausência de tua temperatura, de teu cheiro, aqueles pêlos teus que vão caindo, um lá, outro aqui, a noite inteira, pra na manhã grudarem-se aos meus.
Francamente isto: eu sozinha dentro do quarto, dentro da rua, dentro da esquina, dentro do bairro, dentro da cidade, dentro do país, dentro da vida.
Mas não por mania ou tique nervoso, que tem sido assim, mas sem gravidade ou nervura, tem sido assim, você na sala, no tapete, enfim, digo: tem sido difícil aprender a dormir novamente sem você.

quinta-feira, agosto 30, 2007

[...] Ainda posso ouvi-lo terminando a última frase da única música que tocou pra mim naquela noite: “maai endlessss looove”, batendo forte nas cordas do violão, com raiva? tesão? pressa de acabar logo? cansaço?
Aquela merda de música brega.
Na penumbra do quarto, pisei sem querer na capa de um livro de David Leavitt - Family Dancing, anotei na cabeça - entropecei no cinzeiro e esparramei cinzas e tocos de cigarro pelo chão encarpetado.
Ele deixara a mala de sei lá qual viagem entreaberta, reparei. Não arrumava nada, ao contrário, ia abrindo as janelas e fechando as cortinas - o que era inútil pois o vento as espalhava de novo -, jogando toalhas limpas, um monte, brancas e felpudas, e sabonetes em minha direção.
Quer tomar banho?
Tome.
Não quer?
Não tome.
E ria num tom mais grave do que o que usava pra cantar: rá, rá, rá, rá, rá.
Quer beber?
Beba.
Apontou as garrafas na sala.
Quer comer?
Coma.
E apontava a cozinha.
Achei que ele estava fora de si e fiquei no meu canto.
Havia um quadro enorme de um rapaz sentado, seminu, cabeça encostada nos joelhos, cintura coberta por um pano vermelho. A pele era morena, um efebo, diriam os gregos, se gregos ali houvesse.
Fiquei admirando o quadro e ele veio por trás e disse em meu ouvido: ah, quer esse rapazinho lindo pra você?
Olhei-o nos olhos.
Estava de fato embriagado ou coisa pior.
Pois se fodeu, ele riu, esse rapaz os vermes já comeram há séculos, rá, rá, rá, rá.
Eu disse pra ele ficar quieto um segundo.
Piscou os olhos.
E novamente era aquele rosto inocente, machucado pela vida, seríssimo, me olhando.
Abracei-o: fique quieto que eu vou cuidar de você.
Ah, ele fez, que bonitinho! Preciso mesmo de seus cuidados, sempre precisei.
Mas saiu dos meus braços outra vez.
Sumia pelos outros cômodos do apartamento, voltava dizendo bobagens sem sentido: dou uma ameixa se você disser quantas meninas foram estupradas ontem só no Rio de Janeiro.
O quê?
Você tá maluco, cara?!
Eu nada entendia sobre meninas.
AH!!! Ele fez bem alto e irônico. Três ameixas se acertar em São Paulo e no Rio. E todas as ameixas do mundo se acertares quantas foram estupradas no Brasiilll!
Falava Brasil como os estrangeiros: breiziul.
Olhei pras mãos dele: estavam sujas de uma coisa amarronzada, estranha.
Falei que o amava, que eu não era imbecil, que o amava de verdade.
Eu sei, eu sei, ele respondeu, eu sei, querido, você é uma gracinha, soube desde que lhe vi.
Agora vamos trepar.
E me empurrou em direção à cama. [...]

sexta-feira, agosto 17, 2007

O meu amor ignora a fome e os maltratos do mundo.
Com meu coração alheio
circulei o mar.
Você chegou da terra do frio,
com suas noites de choro e suicídio alheios.
Em carne viva e cada vez mais passível de disseminação de vírus,
estou a te adorar.

Acabar de vez com a velha história da sereiazinha e do príncipe
que agora virou pescador.
Pequena, vago à tua procura.
Estás sempre entre outros homens,
e é na boca deles, não na minha, que mergulhas
a língua que quero pra mim.
Amaldiçôo meu amor inacabado e torto,
quero que o mundo solte mais pestes e mais bombas
e quero da sacada aplaudir e olhar.
Com meu coração inteiro
caminho de volta ao mar.

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E quando passas na rua, vais deixando miúdos de mim
que o sol esmaga sobre as poças onde saltam teus pés.
Na Praça do Medo, na Av. das Flores,
no beco dos Martírios, na Tiradentes, esquina com a Canários,
antes de chegar na Rua Larga que vai dar, à esquerda, na Biblioteca, à direita, no mar.
Chove tanto que posso sentir vidas e pedaços de chão afundarem.
A poeira dessa cidade
cobrindo meus olhos de faíscas sutis.
O ódio, o tempo:
as nuvens não são de neve nem de terra nem de algodão,
- tanto tempo sem dormir,
no ritmo do mundo arrastado,
fechando a vida, abusando da idade
nas mesas dos bares, embaixo da ponte,
nunca consigo a hora precisa de te ver passar.
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Morte rápida de flores,
morte vagarosa de insetos,
- meu corpo deixando de existir.
Da cor vária e fugaz
dos hibiscos roubados na Praça do Medo, em quintais alheios, vou pintando teus cabelos,
amor que por maldade esconde
o sol na palma da mão.

Tenho medo:
beber demais/perder o traço/mancar da cabeça na frente de todos.
Tu bem sabes porquê:
na ordem do mundo, os mancos da cabeça são guardados em armários infestados de cupim.
Remédios de amarras, remédios de amarras,
- vomito tudo ao entardecer.
Da cor vária e atroz dos hibiscos roubados,
quero reformular teus cabelos.
Quem sou eu, te amando desde os primeiros raios até a noite de todo descer?

Receio:
perder as estações/chover demais/jogar brumas da cabeça em cima dos mundos inocentes, e ainda assim, não ferir por inteiro a ninguém.
Ah, eu preciso tanto
escancarar o sangue de alguém!

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Quando a porrada acerta de cheio tua beleza de olhos claros:
- você é meu amor, muito prazer, eu sempre quis te namorar.
E te jogar rio abaixo, ir de canoa ver seu corpo também morrer.
Belos e muito miúdos,
sorrindo dentro dos óculos, seus olhos, Eric, seus olhos,
acesos pra outros homens, nunca pra mim.

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Vamos andando e já é outro dia,
café nos espera onde a tristeza - finjo eu, mulher desgraçadamente mentirosa - não está.
Espumas nos atravessam
quando nos fazemos irmãos e amigos dentro do mar.

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Se meus amores estarão sempre calados
pelo tempo e pela gastura do sexo
que quer somente ao seu pra emparedar,
falo então do seu jeito de arrancar crostas de musgo das pedras,
seu jeito de desistir seguindo em frente,
seu jeito de amar corpos iguais ou contigo parecidos.
Não gosto e falo: seu jeito é uma tortura que sempre me machucará.

Por trás do vidro te emolduro:
não preciso compor com todas as letras, escrevo pra mim mesma, às vezes por cinismo, às vezes por compaixão.
Porque é bom te ver através dessas lentes de binóculo:
são 10:15, você ainda dorme?, deitado na cama, meio coberto, meio desnudo pelos lençóis.
Mas, querido, querido, o que estás fazendo de olhos fechados
por acaso não sabes que boa parte da cidade já está de pé?

segunda-feira, agosto 06, 2007


Quarto-crescente


Botões presos às camisas, em filas, bordadinhos.
Foi molhar as plantas
e os dias abriram-se em labaredas.
Andar já não se quer,
o mato espezinha, vidas estranhas
querem acompanhar todos os prenúncios
tanto de guerra como de calma.
Vazia, já sem noite ou manhã,
no intervalo de regar ou pôr botões,
costurou uma letras,
umas letras puseram-se de pé
e já estavam a esburacar
as tristes paredes da casa.

sexta-feira, julho 20, 2007


PAPOULAS DE JULHO
Ó papoulinhas pequenas flamas do inferno,
Então não fazem mal?
Vocês vibram. É impossível tocá-las.
Eu ponho as mãos entre as flamas. Nada me queima.
E me fatiga ficar a olhá-las
Assim vibrantes, enrugadas e rubras, como a pele de uma boca.
Uma boca sangrando.
Pequenas franjas sangrentas!
Há vapores que não posso tocar.
Onde estão os narcóticos, as repugnantes cápsulas?
Se eu pudesse sangrar, ou dormir!
Se minha boca pudesse unir-se a tal ferida !
Ou que seus licores filtrem-se em mim, nessa cápsula de vidro,
Entorpecendo e apaziguando.
Mas sem cor. Sem cor alguma.
(Sylvia Plath/ Tradução de Afonso Félix de Souza )

sábado, julho 14, 2007

[...] Deixa a depressão lá. Quietinha. Esperando do outro lado da pista. Não quer se perder no trânsito por desagulhas do amor.
Que o mundo se roesse em lágrimas, se explodisse, se esturricasse longe dela. Não se importaria. Queria apenas ficar quieta. Nada pra pensar, nada pra fazer.
Com as mãos pode brincar de coelhinho: dois dedos erguidos, o indicador e o anular, e o resto dos dedos em forma de nó, juntos. Fazendo movimentos na penumbra da parede. Com a outra mão, faz a boca de um lobo, alongando os dedos e os curvando como se fosse desenhar um “C” com eles. Realmente, parece um lobo perseguindo o coelho.
Ela ri: isso aprendeu com Wim Wenders... Asas do desejo ou Tão longe, tão perto?
Levanta-se e põe uma música. A música ainda é tudo de leve e verdadeiro num mundo cretino, caduco. Look at me/ who am I supposed to be?/ look at me/ oh, my love...
Sim, amor da minha vida, o cansaço estranho outra vez.
Foi na cozinha esquentar a comida. Provou o suco de manga.
Um bilhete da mãe deixado na portaria dizia que a amava. Minha-filha-você-vai-superar-essa-desgraça-eu-sei-sempre-acreditei-na-sua-força.
Um bilhete com um terço ao lado. Reze, a mãe pedia, procure ter confiança em Deus.
Em Deus, ela repetiu, irônica, masculino e cheio de esperma, tenho que ter confiança em Deus?
Pois sim.
A inocência dos ventres férteis. A dança torta nos ladrilhos bem esfregados da cozinha.
Ela não acredita.
Está muito, muito irritada neste instante.
Abre a tampa da lixeira, joga o terço lá dentro: God is a concept, and that’s reality.
Porém, fraqueja.
Os terços, as mães, coitados, que culpa têm?
Dá de se lembrar, na hora errada e tardiamente, como é de praxe, que Marcel adora terços. Às vezes, passa semanas desfilando com eles no pescoço, ora de madeira, ora de prata, de ouro, de contas. Em vez de jogar este fora, portanto, devia dá-lo de presente pra ele. Ia pôr a mão no lixo e trazê-lo de volta, lavar com sabão e passar álcool?
Indecisão cretina.
Pego-não-pego-o-terço-de-volta-pra-dar-a-Marcel-de-presente?
Deu com os ombros e fechou a lixeira.
Deu com os ombros e abriu a lixeira.
Tirou o terço, lavou.
Nó no peito: a mãe fizera com a melhor das intenções. Pobrezinha. As mães. A fé. O lado bom da vida brilhando, cintilando. Quase sentiu a mão dele, o abraço forte que só ele tem, puxando-a, inteira, pra si. A possibilidade de uma trégua no escuro: venha, feche os olhos e sinta como é calmo, como é intenso, como é profundo e silencioso viver.
Onde? Como? Oh, não. Uma tontura acompanhada de leveza, como nos primeiros orgasmos juvenis. Uma tontura boa e a cabeça se abre como a comportar todos os objetos e barulhos e cores de uma só vez.
De novo, a vontade absurda de recomeçar, de entender.
Ok, o que estava feito, feito estava. Paciência. Bastava nada dizer a mãe nem a ele. Pronto. Passou álcool no terço, embrulhou num papel fininho vermelho-seda, de sabe lá que presente ganhara, quando e de quem. Um papel fininho que estava debaixo do baú de bijuterias. Perfeito. Marcel ia adorar. É verdade que ninguém precisa saber os detalhes mórbidos que antecedem as delicadezas da vida, certo? Basta o silêncio, uma frase antiga (lembrei de você) e todos ficam felizes. A dor ainda não passara de todo. Mas ela toma banho assim mesmo e sai pra encontrá-lo. [...]

quarta-feira, julho 11, 2007

PROGRAMA PETROBRAS CULTURAL - SELEÇÃO 2006 / 2007PRODUÇÃO E DIFUSÃO - LITERATURACRIAÇÃO LITERÁRIA: FICÇÃO E POESIA


PROJETO CONTEMPLADO


PROJETO LITERÁRIO PRIMAVERA NOS OSSOS - ROMANCE
Protocolo: 3533
Proponente: Alessandra Leila Borges Gomes
Estado do Proponente: BA
Apresentação: Romance com linguagem experimental focada na representação da experiência de uma mulher estuprada.

Acho que Alessandra Leila Borges Gomes sou eu, uauauauau!

sábado, junho 30, 2007

"Anankê" (trecho)

[...] Sem sonhos.
Como sempre.
Ir embora, ir embora, é tudo que sempre quis.
Apesar das moscas, das muriçocas e do calor, nunca viu lugar pra ter mais borboletas amarelas do que ali...
Elas ficam sobrevoando as flores dos flamboyants.
As borboletas amarelas de Bom Jesus da Lapa.
Todos os flamboyants estão carregados.
De flores, delas.
Na Manoel Novais, antiga Lauro de Freitas, ela pára.
Impossível não parar pra ver os flamboyants florindo o chão de vermelho. Senta no chão colorido.
O calçamento ainda não está quente.
Escreve qualquer bobagem.
A voz dele chegando nítida: há alguma coisa atrás dos seus olhos que eu nunca vi...
Cabeça inchada de tanto espaço vazio.
Vou embora antes do ano novo entrar.
Como é difícil escrever com o ônibus em movimento.
A sensatez que ele deu sopra o ar em seus ouvidos: escrever feito louco pra ver se, de repente, alguém vem abrir a porta do casulo...[1]
Isso sim, nunca passa.
O tempo também não.
Só habita fora do corpo por necessidade quase cega de ver o que não conhece. Comer poeira, vento, chegar no porto de mãos vazias e inventar partidas: caralho, que saudade desse mar...
Sabe lá porquê.
Ela o ama.
Ela o ama tanto.
Entorpecida de todas as formas mínimas que o trazem de volta pra vida, e isso, como sabemos, é amar no escuro, é amar sem objetivo, é deixar o tempo morrer.
Quando procura o verbo ou a isca, ele evapora.
O lixo de sua pele e o medo de envelhecer.
O lixo do país e das pessoas que não interessam mais.
O lixo dos sonhos, as neuroses, as tormentas mentais.
Sou doente, repete quando chega numa cidade diferente, quando abandona mais uma cidade: iguais, sempre iguais.
Quando as pernas param sem vontade de ir.
Barulhinho de água nos poros.
Abre os olhos: não há.
Lá embaixo lavam calçadas.
Toma sorvete e acha muito ruim.
Era de frutas cristalizadas, mas tinha gosto de pirulito da infância.
Faz tempo.
Horas talvez.
Ele está com ela, ainda e sempre, falando, cantando.
Está com ela e também lê Saramago, também lê Florbela Espanca, Carlos Anísio Melhor e Rimbaud.
Não saber continuar.
A dispersão, a dispersão...
Pensa na voz dentro do corpo.
O escuro de uma voz dentro de um corpo...
Água gelada descendo pela garganta.
Tem ganas.
Quando o vê indo embora, de olhos fechados e falho de explicações.
Num acidente de carro.
Vozes estranhas avisam: o ônibus chocou-se com um caminhão.
Ele foi o único que não sobreviveu.
De pancada na cabeça.
Pescoço separado do resto do corpo.
Ônibus da empresa Novo Horizonte.
Sabe de antemão que a letra vai sair sempre torta, e, assim como as palavras, como toda a estrutura da história, ninguém irá entender.
As músicas que ele fez pra ela não foram gravadas.
Saudade, saudade, outra palavra saindo torta.
Ela tem medo de não conseguir.
Continuar ali, correndo entre dias e imagens.
Ligar pra um telefone mudo em Bom Jesus da Lapa.
Um telefone que chama ao deus-dará.
A mãe e as irmãs dele se livraram da casa?
Por que é que ninguém nunca atende?
Ele saiu.
Está dormindo.
Ainda não chegou de Conquista.
Essa doença é corajosa.
Faz com que ela ouça nitidamente:
– Não, querida, ele não está.
Sua doença é continuar procurando onde ele não mais habita, onde nunca habitou.
Tudo que não tinha coragem de fazer antes, faz agora, mesmo sabendo que é em vão.
Enumera lápides e lápides no Campo Santo.
Ouve informações vazias de funcionários que não a entendem.
Morreu na estrada de Pojuca e foi enterrado aqui, em Salvador?
Sim.
Em 27 de dezembro de 1987.
Ele era órfão de pai.
Ele era meu namorado.
O quê? Só tinha 20 anos?
Mas você não tem a rua e o número?
Não.
Sequer sabia que num cemitério havia coisas tão marcadas assim.
Tomando os nervos.
Invadindo como um obsessor: o olhar, a voz: vou sem culpa pra algum lugar, talvez a luta faça eu crer que ante os olhos há tanto querer...[2]
Não sou de pedra pra agüentar isso, ela se desespera, não sou de pedra, porra, vá embora de verdade, me deixe em paz.
Já sabe que a memória é um campo de lixo.
Todo dia os caminhões que trafegam dentro dos olhos, da língua, do peito, do sexo, estacionam na entrada e descarregam os momentos, os conheceres inúteis.
Se não houvesse vento forte a cada intervalo de tempo, poder-se-ia ir lá, na entrada, e organizar em baldes ou em latões o lixo diário.
Mas não, os vendavais são constantes.
Misturam o que é perecível com o que não é.
Desfigura os cheiros: os odores se complicam por dentro.
Ele usava um perfume de sândalo, e tinha a pele estranhamente febril.
Não, não era assim.
Ele usava qualquer coisa forte, masculina, meio madeira velha, meio ervas molhadas de chuva.
A pele esquentava era quando ele bebia muito...
Qual era mesmo o perfume que ele usava?
Ela derruba todas as cartas e poemas deixados pela mão dele.
Qual?

[1] Carta de 11. 11. 87: Marquinho.
[2] Sem título: Marquinho.

terça-feira, junho 19, 2007


Mais-que-perfeito

Quantas vezes eu quis que a palavra fosse um choque
terno entre teus lábios e os meus
maiores inferiores quem dera úmidos
dos teus.
Quantas vezes eletrólise
dançar ainda faz bem
ainda um pouco de nós miúdos
um pouco e mais outro
nó.
Quantas quantas vezes
ter é questão de delicadeza de pêlos
uma vez próximos
os teus nos meus
nunca foram tão perfeitos.
Mas
mais que fios e poros tinindo,
não me deixam dormir os membros, os recomeços;
mais que suores, ganidos,
não me deixam dormir os lilases
perfurando as estações.
Nada é nunca tão vazio
se um pouco de voz, um pouco de guerra,
fecham a tarde numa cidade
tão antiga assim.

quinta-feira, junho 14, 2007

Por que caras em vez de palavras? Isso simplesmente. Caras tão somente. Uma coisa tão chata que dá nó nos ossos tentar entendê-la. As pessoas, esses focinhos de porcos, essas palavras toscas, os beijinhos no rosto, “aqui em São Paulo é só um, no Rio são dois”, argh!, risinhos de puro cinismo, “eu tenho todos os livros dele editados no exterior, sabe?”, segure o vômito, “passei 20 dias na Itália”, deixa eu passar, seu nordestino imundo, por que não vai dar o cu pra outro, meu anjo?, um murro no meio da venta ainda é pouco, “porque meu tio agora é presidente da câmara, entende?”, tudo isso debaixo de um friiiiiiiiiiiio!, casacos pretos, marrons, xales, sobretudos, que coisa linda essa menina de verde, que coisa besta esse rapaz fazendo pose, quanta canseira, quanto cuspe, “vamos pra Vila Madalena ou pro Bexiga?”, veja: “o viadinho pedante recebe 500 reais do banco pra vir aqui falar mal do banco, pode?”, “ele escreve mal pra cacete mas se orgulha de ganhar dinheiro com roteiro de cinema nacional”, cinema nacional, você disse?, “uma bosta”, isso sim.
Começa assim:
– Mamãe, eu quero ser famoso.
Lugar desimporta.
Pode ser São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Salvador. O ser humano não deu pra nada na vida? Tem de ser famoso.
Toca algum instrumento?
Não.
Tem voz para cantar?
Não.
Pinta alguma coisa?
Na-nã-nim-nã-não!
Desenha?
Qual!
Dirige? Atua? Dança?
Necas de pitibiriba.
Sobra o que pra quem não tem talento pra nada?
Literatura.
Ave, palavra. A mãe da ignorância.

quinta-feira, maio 31, 2007

Por que a infância deles enche nossa vida de sonhos


Sonhos da menina
A flor com que a menina sonha
está no sonho?
ou na fronha?
Sonho:
risonho.

O vento sozinho
no seu carrinho.
De que tamanho
seria o rebanho?

A vizinha
apanha
a sombrinha
de teia de aranha . . .
Na lua há um ninho
de passarinho.
A lua com que a menina sonha
é o linho do sonho
ou a lua da fronha?
(Cecília Meireles)

segunda-feira, maio 28, 2007

[...] O mundo não é azul celeste nem marinho, ouvi minha mãe dizer assim que pus a cabeça no travesseiro, tentando dormir, o mundo não é turquesa nem royal, o mundo não é azul transparente nem sombrio, o mundo é cor de sangue, sangue esmaltado, denso, sangue compacto que não muda de tom. Seria como o meu sangue, pensei, sonolento, sem querer me dar qualquer atenção, uma parte da cabeça ainda acesa pelo barulho da rua, outra parte acesa pelo som da voz dela, de minha mãe, que continuava a caracterizar mais o vermelho do sangue, como se fosse possível, seria oriunda do meu sangue a cor do mundo? Vermelho sem variações, encorpado, vazio de qualquer suavidade, vermelho que vai pingando gota a gota, como tinta espessa numa janela de vidro, capturando todas as coisas do apartamento e encobrindo-as: meu guarda-chuva preto, a poltrona onde me sento e leio, a lâmpada apagada dentro do lustre, o armário com roupas, meus sapatos debaixo da cama, os livros, a estante, os blocos coloridos, canetas de formas infinitas, o aparelho de som, a mala vazia em cima do armário, a reprodução barata de Van Gogh na parede, minha agenda aberta, as contas da próxima semana, o baú cheio de cartas, meus cds, os vinis. Vermelho-mais-claro-pouquíssima-coisa-que-o-tinto, denso, denso, espesso, espesso não é o mesmo que denso, minha mãe? Procurar no dicionário depois. Repetição inútil, eu conheço a cor do sangue, minha flor da primavera, já entendi, nem a pau me levantaria neste instante pra conferir adjetivos, o sangue está encobrindo também o dicionário, não o vejo, comprei uma nova edição atualizada e não sei o que fazer com a velha, vender? Doar? Il mondo non é blú, mio figlio, diz grave, como uma grande matrona italiana. Vermelho mais forte que o córdoba... Ei, tem isso de uma cor se chamar córdoba?
_____________________________________________________________________________________
Nosso ódio tamanho servirá para alguma coisa? A gente já sofre tanto, ela diz, um bom espaço é o mínimo que podemos ter. Ela está muito feliz por ter achado seu apartamento 2/4-sala-com-dependência em Nazaré. Ainda não é inverno, mas o sol sumiu, dois dias de céu estranho, pouco sol, nenhuma chuva, apenas vento úmido e plantas amarelando lá fora. De certo que as rugas são o que menos nos atrai nas pessoas, porém, segundo minha mãe, as plantas não envelhecem, ao contrário, quando amarelam, estão a nos dizer que vai haver renovação. Isso é certo. Tão certo como deitar no chão da sala e ouvir aquelas nossas músicas preferidas. Que sempre dizem: não se desespere, respire fundo, mantenha a coluna ereta. Confiro no relógio: 22: 40. Ela acende incenso de orquídea e fala muito sobre a importância de a gente ser feliz. A minha menina de meias com símbolos de signos. A minha menina de cabelos negros, longos. Sou bicho do mato, maaaaaaaaaaaaaaaassss... Se você quiser alguém pra ser só seu. Hoje, apenas hoje. É o que posso ofertar. Vinho tinto, depois café. Passaram um especial sobre a Legião Urbana na TV. Comemoramos, quase crianças de tão felizes. As taças erguidas. À nossa Legião. Que já acabou. Absolutamente tudo que eu amo periga acabar assim, tragicamente, como minha banda preferida. Meu tempo é uma piada sem dono. A metade dele ainda tá no escuro. Nosso ódio tem que servir pra alguma coisa, ela repete, enquanto os cachorros latem e o sono não vem. Dia especial, dia perdido na precariedade da vida. Solidão de cacos partidos. Mesmo que você tente, compartilhe, improvise: não há jeito de expulsá-la. Solidão, solidão, ninguém pode contigo. É foda. Mas tudo bem, tudo bem, tudo bem. Não darei bola, sou um cara prático, detesto tragédias. Agarro-a, ergo seu corpo. Ela fica na ponta dos pés pra me abraçar. Correspondência exata. Nunca mais terei de volta minha língua de tanto que preciso percorrê-la. Assim. Cada espaço de pele queimada de sol. Marcas, manchas. Um cheiro tão-cheiro-de-menina invade os fios da mente, do nariz. As roupas (minhas, dela) pelo chão da casa. Felicidade de cabelos longos. Felicidade de cintura miúda. Felicidade: eu amo seus quadris. Vem comigo que o mundo é grande, tão imenso que dói de ver. Nos perderemos nele. Sim. Não. Vou contigo até onde as forças se bastam: poro com poro, pêlo com pêlo. Dentro. Os contrários se encaixam. Tudo é intenso, suficiente, perfeito. Agora, assim. Teus cabelos, tuas dobras. Não me escape, te puxo mais & mais. Uma menininha. Uma cigarra. Uma flor. Tenho medo que entrem, de repente, pela janela, gritando, me acusando de ter feito coisas ruins por aí. Atirando, com cavalos, bombas, metralhadoras, cães. Vão entrar pelo teto e te levar de mim. Não escorregue, caralho, vamos furar o piso do quarto, melhor você ficar de frente, será que é um crime, será que vão me prender depois?, quero abocanhar seus seios, os dois, ao mesmo tempo, não, não é um crime, te morder, ficar dentro de ti, pra sempre, Jesus-Cristo, assim-sim-yeah, não quero que acabe mais nunca, por que você está gemendo tão alto?, esta cara é de prazer ou de dor?, meu-pai-do-céu, eu-não-agüento, quem ensinou esta menina a mexer deste jeito?, puta-que-pariu. [...]

sábado, maio 12, 2007

segunda-feira, maio 07, 2007

Os antigos têm razão quando dizem da importância de se acordar cedo, não há nada melhor no mundo para acender o cérebro da gente do que a luz crua da manhã.
Está um tempo chuvoso, e ela já acumulava milhares de imagens e frases soltas que são, em verdade, o seu passaporte pra um mundo interior.
O que haveria de ser pintado, dito?
Contar os passos na rua dos Escravos, entre as pedras irregulares, os acertos e topadas dos pés dentro dos sapatos.
Pensou então inteira dentro dele: um amor claro, mas não tão límpido que não pudesse conter as salamandras.
Era isso o que lhe prometera?
Não sabia.
Recordar, por vezes, é se atirar em quartos escuros.

domingo, abril 29, 2007

Rarefação (trechos)


As cinzas do cigarro e o seu rosto no espelho se abrem e se fecham num jardim sem palavras, sem promessas, num jardim sem.[1]


Meu amor, contador de histórias,
não te ter é embranquecer o nó.
Não temos mais cidades pra grafitar os muros,
correr dos cachorros, cuspir fumaça pra fora dos pulmões,
anotar placas de ônibus, bares entre dois viadutos,
pernas de prostitutas, virilhas fáceis de homens,
adoção sem fim da noite que alguém um dia disse:
é criança, vamos adentrar.
Jogos elétricos, corpos. Cinemas, bazares.
A cor verde-musgo voltando,
a improvável capacidade de amar de dois elefantes,
o inconcebível encontro: meu rosto e seu rosto roxos
no fundo do mar
.[2]


Movimentos de barcos soltos pela casa,
os cheiros do teu corpo ora vivo, ora morto,
você pintado, óleo sobre a tela,
tua boca dizendo: adoro cerejas.
Refazer o passado é morrer.
Os cadernos estão descendo na chuva,
aqui, arrisco ficar guardada,
por isso me molho lá fora
na nebulosidade azul-branca-borrada,
grade de linhas falhas,
celulose ultrapassada...
Sinto saudades de ti
e é sempre como se desembaçasse
vidros molhados de chuva.
Sempre, sempre, sempre: que palavra linda!,
é tempo de retê-la na boca lentamente,
mastigar, conhecê-la inteira,
até chegar um novo tempo de devolvê-la à língua.
Amanhã, não agora: nesse tempo úmido
que se fecha sobre nossos corpos
e se abre sobre o mundo.
Amanhã, te peço, te falo no escuro,
amanhã aconteceremos,
insanos dentro da chuva.
Há de haver alguma chuva,
penso, quero, decido: amanhã.



Infelizmente, lá vem de novo a vida:
é preciso correr.
Estar de pé na sacada,
dentro dos olhos: os postes, os telhados, os carros, as pessoas.
Meu anjo que não tem corpo
resiste toda madrugada
e quando acordo, já se fez pó outra vez.
Não adianta nunca, eu sei,
é a vida: é preciso correr.
Perscrutar o motivo dos peixes
que incomodam de morte o ar.
Quando retorno às janelas embaçadas do ontem
pouco, quase nada, tenho a dizer:
ah, aquela minha companheira de cabelos ralos e claros,
ou o meu companheiro que preferia machos,
que bom que vocês morreram!
Todo e qualquer riso deles
sempre agudava de ódio esta casa.
Eu queria estar só com Morrissey, mas os ossos visíveis
ou a carne adorável do pescoço dele, dos pés dela,
vinham de lá pra cá cantando coisas em português.
Agora, que alívio, que silêncio.
Vou religiosamente ao cemitério,
e levo-lhes flores da estação que passou.


[1] Zé Luís Franco.
[2] Herbert Vianna.

quarta-feira, abril 25, 2007

FEIRA HYPE, TODO SÁBADO, DAS 13 ÀS 20 HORAS, NO ICBA, CORREDOR DA VITÓRIA

Feira de Santana: Tom Zé
Viajo segunda-feira feira de santana.
Quem quiser mandar recado,
Remeter pacote
Uma carta cativante
Á rua numerada,
O nome maiusculoso
Pra evitar engano
Ou então que o destino
Se destrave longe.
Meticuloso, meu prazer não tem medida
Teje aqui segunda-feira antes da partida
Viajo segunda-feira feira de santana
Trace aqui seu endereço
Sem deixar tropeço
Pode seu destinatário
Ter morrido ou simulado,
Pousado ou avoado
Nas sentenças do seu fado...
Eu vou ficar avexado
Com uma carta sem dono
Le-levando a cuja,
Penando sem ter pousada
Batendo de porta em porta
Como uma alma penada.
Viajo segunda-feira
Feira de santana...
Mas se eu trouxer de volta
O desencontro choroso
Da missão desincumprida
Devolvo seu envelope
Intacto, certo e fechado
Odeio disse-me-disse,
Condeno a bisbilhotice.
Viajo segunda-feira
Feira de santana...
Se se der o sucedido
Me aguarde aqui no piso,
Sete semanas seguidas
A partir do mês em frente
Não sou letra reticente
Palavra de homem racha
Mas não volta diferente.

quarta-feira, abril 11, 2007

O fim do mundo (trechos)

[...]
Você disse que toda a nossa saudade será em tons azuis, agora, 12:40 da manhã, o filme abre o primeiro flashback que minha mente não consegue evitar: estou naquela passagem azul quando você cortou meus cabelos. Lembra? O céu é de nuvens breves e traz as borboletas de setembro. Você encosta os lábios em meu pescoço - eu dizendo que devia estar cheio de fios do cabelo aparado, você negando -, brinca de me morder forte, beija várias vezes minha nuca, encosta o nariz, e fica esperando o resultado. Eu estremecendo, endurecendo pra você.
Memória interditada. Mais do que no cinema. Segundo café do dia. Você está na minha camisa. Acho graça. O delírio me fez avançar um pouco pro início de tudo. Eu tomando café expresso com sanduíche de tomates secos, Sexta-feira treze, praça da alimentação do Aeroclube. Você vem e pede suco de lima. Olhares cruzados. Os meus observaram o teu cabelo liso solto, voando, o violão dentro da capa escura pendurado em tuas costas, a largura dos teus ombros na camiseta preta, a tua boca carnuda, as tuas mãos grossas, o volume do teu pau. Os teus observaram, eu soube depois, o volume do meu pau, o brinco prateado na minha orelha esquerda, o meu sorriso. Comentários irrelevantes sobre a paisagem, o atendimento e a fauna do Aeroclube. O que salva é a visão maravilhosa do mar pra quem freqüentava com a luz do dia, você disse. Raramente venho aqui, eu respondi. Ia ver a primeira sessão de Fogo contra fogo, com Robert de Niro e Al Pacino, meu ator preferido. Vergonha miúda de te conhecer ali: lugar tão medíocre. O que era mesmo que você ia assistir? Nada, você disse, vim visitar a loja de um amigo.
Depois é você no meu carro, eu dirigindo. É você pondo a mão na minha coxa, eu retribuindo. O pára-brisa cheio de chuviscos. Chovia e parava. Parava e chovia. As invenções do tempo, como esquecer? Brincamos de desenhar na calçada do meu prédio um arco-íris. Troncho e com tão poucas cores, só o vermelho, o amarelo e o verde dos lápis de cera que você levava consigo. Nosso mais perfeito arco-íris que a chuva, cúmplice, apagou.
Me pego pensando em morar contigo. FF brusco, parando em cenas de 10, 11 meses depois. Primeiro de tudo, viriam as coisas certas pra cabeça: você me amava mesmo? E eu te amava? Depois, as mais ou menos bestas: dividir o mesmo prato, travesseiro, toalha de banho, pasta de dentes. Amanhecer em nós. Fazer café juntos. Entre outras, entre tantas. E as coisas do espírito: você no meu silêncio. Você respirando comigo. Eu em você. E as coisas do corpo. E as coisas da vida. Assim, por dois anos. Eu quis ter você na minha rotina. Sentindo, no entanto, a ameaça do agora. Que você vai pro Oriente. O martelo da despedida. Você quer voltar pra casa e sua casa é o mundo. A minha é um templo oco que a mente faz e refaz. Realidade-de-ponta-de-agulha. Mesmo sabendo que melhores horas chegarão, quero chorar e vem a secura. Os brios de equilibrista. Vou me ancorar. Sabe-se lá como. Sabe-se lá o que vim fazer aqui. Um dia quebrar os meios, um dia esquecer as ligações. Então aquela casa ficará perdida. Abandonada no encanto das brumas. Eu não precisarei dela. Ela nunca mais será minha.
As flores de sábado. As flores de sábado que seu Sílvio trouxe enfeitam mesa por mesa do café-bar. O desmaio morno do sol nos jarros que mantêm por hoje a vida delas. Que mais poderei nomear neste canto que é puro você? Terceiro café do dia: Bruce Springsteen reacende o mundo ao meu redor: My lover man. Bruce Springsteen arrasta o dia: Sad eyes. Bruce Springsteen leva o dia embora: Wages of sin.
Estou farto. Pedra voltarei, ou água. Pingo de chuva mortalmente findo. Este é o nosso fim. No vidro empoeirado de alguma galeria. Estaremos congelados e mortos. No vidro. Tentei ser invencível, mas agora fecho os olhos: desisto. Vou.
[...]

sábado, abril 07, 2007

Uma vez vertigem, sempre problema.
Evitemos.
Visualizamos o céu de manhã bem cedo e despreocupamo-nos: tudo bem, vai dar tudo certo. Não por merecimento ou fé, mas por que, repense, meu bem: há outro jeito de sobreviver?
***
A melancolia. Sim.
O pessimismo. Sim.
A vontade de morrer. Sim.
E se morre?
Não.
E quando morre?
Não adianta: nada.
****
A linha é fina mas não tem tensão que a faça interativa: lá é lá, e cá é cá.
Sem contato, sem palavras.
***
Estás preenchendo o branco apenas por preencher?
É verdade.
Qual cabimento nisto?
Pensei "lilás".
Nada veio.
"Automatic for the people", pensei.
Veio: uma vertigem.
É sempre problema.
Evitemos.

quarta-feira, abril 04, 2007



























mas não sei o que te entreguei ontem, mesmo que me tortures, não me lembrarei, há tantas coisas erguidas lá fora, coisas feias e sujas, coisas mofadas, esquisitas, diferentes de roupas branquinhas cheirando à lavanda no varal.

************************************

não adianta nada este olho, este lamento, este grito teu ressoando. eis o caminho sem volta, o caminho do pesadelo: você está congelado na infância, naquele tempo em que, feito o poema do Álvaro de Campos, todos te adoravam e contigo comemoravam o dia dos teus anos.

**************************************

então vou voltando de mansinho, me aninhando em teus braços, fazendo festa com os pêlos do peito que ora embranquecem. levaremos um tempo inútil, um tempo longo para entendermos que-foi-de-repente que nos jogou noutro canto, que-foi-de-repente que fez este corte estranho.

sexta-feira, março 23, 2007

Vôos (trechos)

A poeira não se assenta nas coisas por causa do vento, mas sim pela natureza semimorta dos objetos e peles de seres, plantas e paisagens que, assustados com o correr dos dias em nossas cidades, lançam sua fome sobre a poeira e a retém.
Se fosse apenas por vontade do vento, a poeira dançaria pelo, entre, sob ou em cima deste mundo e com ele rumaria pra outros, brilhante como cauda de cometa ou estrela que cai.
Ocorre que, pra se viver com alguma paz, alguma orientação, todo ser humano precisa reter as coisas por dentro, de forma que estamos permanentemente inchados do vazio delas.
Porque sim, é claro, lógico e evidente: as coisas desaparecem num rompante quando tentamos detê-las dentro de nós.
E, oh!, não queremos que passem tão depressa, seja lá o que for que elas representem pra nossos corpos cansados, não queremos de jeito algum permanecer no vazio suspenso de toda e qualquer ausência.
Nossos pés têm raízes profundas e nenhum grão ou cisco alado vai nos comover com sua leveza fugidia.
Gostamos do peso das coisas, gostamos de seu incômodo arrastar dentro de nossas retinas.
Solo, precisamos de solo.
Dos quatro elementos que aprendemos fundamentais, somos muito mais terra e é feito ela que nos movemos.
Precisamos grudar-nos ao movimento da poeira.
Ser o musgo que cobre os cantos do chão e das pedras em toda e qualquer cidade.
O quê?
Ah, sim, você nada sabe sobre a poeira, o vento, o musgo e o correr dos dias em nossas cidades. Compreendo, compreendo...
Você quer fechar os olhos e nos ouvir explicar?
É rápido:
Nesta cidade, minha querida, o melhor é andar descalça, de ouvidos tapados, pisar sem cuidado nas flores e folhas mortas que cobrem o chão.
Pelo menos de vez em quando, faça o teste: não ouça coisa alguma.
Vá passando como que desiste e não desiste da pouca vida na terra.
Finja que é sempre cedo, ignore, lance longe o foco.
Me dê a mão, vamos passando.
Girando feito pirilampos, bailarinas perdidas, rabo de cometa entre as estrelas, por cima dos telhados, quer sejam de casas, quer sejam de edifícios, olhe e descubra: insetos, gatos e almas penadas vivem por aqui. [...]

quarta-feira, fevereiro 28, 2007

Desconexões

Então saio da cidade como quem quer levar escondido de si mesmo toda a cidade por dentro.
Compactada.
Zipada.
Miudinha.
Abrir minha cidade numa praça florida, parque gigante ou mar sem fim, nas outras cidades onde os pés me levarem. E poder, ao abri-la, fundindo todas as faltas que ela há anos me cravou, ampliar minha pobre minúscula cidade até o infinito. Até romper os limites de barro e feiúra com que ela me fez.


Ouvindo Stones pelo caminho.
Porque um cara bem nascido só pode querer duas coisas da vida: tocar guitarra e amar.
Você foi quem me disse tal asneira.
Mas como amar sentindo que o pulsar mais verdadeiro é a consciência viva de que o podre está infiltrado em tudo, e todos disfarçam-no com perfumes, gestos gentis.
Minha mãe-vidro-eterno-de-alfazema: “pegou o casaco, meu filho?” “Ligue assim que chegar, não se esqueça”.
O motorista do ônibus, lavanda-barata-ou-qualquer-outro-perfume-comum-de-criança: “pode descansar, eu te acordo quando chegar no ponto”.
Sarinha, seca-feito-o-cheiro-de-orquídea-que-jamais-absorvemos-mas-está-tão-mentiroso-em-não-sei-quantos-incensos: “que mãos lindas você tem”.


Roteiro de dias fragmentados. Sem rumo, sem guia.
Nos deixe. Por favor. Nos esqueça.
Não coloque Tua mão pesada sobre nossas cabeças, não invoque Tua maldita alma a nos trazer de volta.
Afaste-se, afaste-se, por favor.
Guarde-nos, suicidas que somos, da fome de viver neste cárcere, o planeta-purgação. O planeta que merece a bomba atômica, há tempos, há séculos, caduco, tosco, inútil. Guarde os que não aceitam o sofrimento como parte de um aprendizado a que se chama, ridiculamente, “existência”, “vida”. Guarde aqueles predestinados a romper mil vezes a escuridão feito estrelas ou anjos perdidos. Feito uma explosão onde os pedaços desagregados jamais voltarão a formar a Tua sagrada unidade: corpo, mente, alma, espírito.
Seja um bom jogador e aceite perder o domínio sobre os que têm coragem de Te ignorar, Te desdenhar, Te esquecer. Os que querem o nada, o vazio, a descriação. O zero absoluto, a descravidão. Guarde de Tua sede de vivência os Hendrixs, os Morrissons, as Joplins, os Drakes, as Anas C., os Cobains, os Deleuzes, as Sylvias, os Ulisses, os Custis, os Sócrates. Salve-os de Ti mesmo.

terça-feira, fevereiro 06, 2007

"Sobre a minha pele navegam barcos" (José Saramago)


Não quero a negra desnuda.
Não quero o baú do morto.
Eu quero o mapa das nuvens
E um barco bem vagaroso.
Ai esquinas esquecidas...
Ai lampiões de fins de linha...
Quem me abana das antigas
Janelas de guilhotina?
Que eu vou passando e passando,
Como em busca de outros ares...
Sempre de barco passando,
Cantando os meus quintanares...
No mesmo instante olvidando
Tudo o de que te lembrares.
(Mário Quintana: Canção de barco e olvido)
É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.
É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros
e a luzimpura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.
(Eugénio de Andrade)

terça-feira, janeiro 23, 2007

Dores de mim (trechos)



A vida é engraçada: os objetos quebrados, mesmo colados, não formam mais um. O todo não se separa, porém, se for separado, jamais volta a ser todo outra vez. E é assim, dentro do absurdo, do inaceitável, que devemos, meio tortos, meio loucos, buscar alguma forma de ser felizes. (João Miguel)


A quentura da padaria encosta em mim.
Odeio perder plantas e não descobrir o por quê. Morte ingrata, toda a natureza recende à ingratidão.
Você murmura meu nome sem saber realmente quem sou. Diz que me quer bem sem nunca ter me conhecido de verdade. Nem desconfia: sou capaz de fazer coisas inimagináveis, magoaria até Deus se achasse preciso.
Gosto desta palavra: preciso. Posso usá-la em vários níveis, me embriagar dela.
Não adianta.
Sofro.
No meio da calçada procurando acertar o passo. No meio da calçada, procurando, procurando. Dentro da mesma atmosfera. O verde cheira a mofo. A chuva nunca vem. Lembro de filmes que dividimos juntos e seguro o choro: mulher de verdade não chora com um saco de pão quente, um quilo de café na mão.
Nada de choro. Quero ser feliz.
Caminhando na calçada. Aquela luz que descobrimos em Theo Angelopoulos está sempre por aqui e me afeta os olhos. Sentindo a quentura do forno que atravessa a parede, atravessa o tecido da blusa, toca a pele como mão de homem jamais tocou: quente, intensa.
Em plena luz do dia.
Se for mulher de verdade, não um arremedo ocidental, é claro que não, não chora. Quanto mais numa calçada, quanto mais em público. Ao contrário, faz de conta que é um dia comum. Que não há luto nem divórcio nem dor.
Da padaria pro mercado: ameixas, laranjas, bananas, tangerinas. Brócolis, cenoura, batata, alface, tomate, cebola. Alho. Não vou comprar couve-flor, na última vez mofou inteirinha na geladeira, longe da minha boca, do meu estômago, das minhas mãos.
Algumas pessoas se queixam do tempo nublado, outras dizem que preferem tempo nublado a chuvas.
Ruídos, ruídos.
Mais cores do que tato.
Uma mulher diz que está ventando demais, começou a ventar forte de uns dias pra cá. Outra responde que é melhor assim: quem sabe com o vento alguma coisa boa aconteça no país.
Todos estão com medo: juros altos, inflação, Rio de Janeiro, George W. Bush, Iraque.
Está tudo distante e escorregando, escorregando dos sentidos como se fosse um mundo miúdo espelhado numa bolha de sabão. Meus sentidos não podem apreender o interior das bolhas de sabão, não podem.
Adiante: me perdendo dentro da feira semanal de flores. Pétala branca no cabelo, refazer quadro nenhum, só exercer o pensamento, a fala mental pra espairecer. Queria comprar girassóis e querem me empurrar orquídeas: descompasso total. Desde Cervantes já era assim, a gente se queimando por dentro, eles negociando. Esquizofrenia maldita, pobre Miguel, pobre de mim.

Meu nome assalta a mente como se fosse algo externo e não parte de mim. O sopro do meu próprio nome confundindo os ouvidos, Maria, você fala, Maria Vitória, alguém chama, tão longe, tantos vãos, quilômetros, cidades, países de mim.

Não quero saber de onde sua voz nasce. Sequer sei o que é espaço, o que é chão. Eu piso fraco nos ladrilhos, mas vôo forte por dentro. Só queria rir um pouco de mim mesma quando pensei nisto: registrar-nos numa imagem que simbolizasse nossa estranheza diante do amor. Nossa inapetência. Fotografar-nos, reproduzir eu e você num clarão instantâneo, que explodisse na rua sem que o provocássemos. Uma imagem absurda, porém, luminosa, capaz de fazer dois seres estranhos se sentirem bem. Representados. Vivos. Ainda que longe, tão longe estivessem... Na insuficiência das brisas. No desejo de se arriscar a cada vendaval. O cheiro de pão quente que um dia os fez acordarem... A verde sedução das plantas que juntos cultivaram... Mas é sempre o mesmo equívoco, já se sabe: as plantas morrem nas manhãs que antecipam os divórcios, como gatos que fogem da dor. A mente, então, falha diante das pequenas mortes, pequenas mortes: jamais poderei entendê-las. Outros seres estranhos pulam pra dentro do barco sem que sejam convidados. Imagens alheias aparecem resistentes no quintal. Há uma porta gigante fechando quando se quer passar, abrindo, quando se está cansada de tentar adentrá-la... E assim, tão vaga e de repente, a dor recomeçou.
[...]

terça-feira, janeiro 16, 2007

Por que nunca mudam a história: você é/não é feliz?
Não, ele não quer o encontro, a possibilidade. Ele é todo neutro. O vazio sem azul, o vazio sem qualquer vestígio de mar.
Felicidade, deixe-o em paz.
A tempestade atravessada não se sabe quantas vezes.
Não importa.
As bacias d’água na chuva fazem pin-ploc, pinnnn-plooooc.
Ele ignora. Ele é todo outono.
Feche os olhos comigo e veja-o pleno.
1, 2, 3, 4, 5, 6... Ele está de perfil, olhos obscurecidos por uma sombra tênue que não deixa serem percebidas a íris azul-profundo, a pupila, o branco cortado por fios vermelhos, os cílios irônicos que, não se sabe exatamente por qual razão, parecem estar sempre abrindo de maneira um tanto lânguida, um tanto desafiadora – com predomínio da segunda.
Nas fotos do inverno, ele só aparece até a cintura. Agarrado num poste, olhos fechados, como que fincado no meio da rua, que, recortada neste ângulo, é mais largo ou praça. A cabeça encostada no poste, as mãos como que se segurando, camisa branca de mangas compridas aberta o suficiente no peito pra deixar ver outra, uma camiseta escura por dentro.
Tanto faz se a foto é preta e branca, ele fecha os olhos ou os fixa no chão da praça, ou rua ou largo.
Só se pode ver duas casas européias, uma escura, outra clara, no fundo de onde a imagem dele está congelada, cercadas por portões de ferro.
Ele não vende sua cidade nem a ostenta aos olhos curiosos de ninguém.
Como qualquer habitante desse continente decadente, ele detém a abertura de sua cidade com o porte impenetrável de quem nunca, apesar de mostrá-lo com orgulho, convida alguém a visitar seu país.
Quero perguntá-lo por que não há primavera nem um verão verdadeiro, só outono e inverno e minguados raios de sol no continente dele, chego perto e esqueço a estrutura que comanda a sua língua, como é que se iniciam as perguntas em sua língua, dear?
Não fosse a delicadeza do amor que nem mais encanta mas quer guardar um resto de elo dentro de nós, eu rasgaria essa imagem, cuspiria em cima, chutá-la-ia em direção ao terreno baldio que vejo lá embaixo.
Quero pronunciar alto o seu nome, na minha língua mesmo, quem sabe com erro, quem sabe com acerto, quero relembrar/descobrir seu nome e dizê-lo milhares de vezes outra vez, como quem encerra na língua uma paixão antiga, a maior.
O caminhão de lixo vai chegando na imediações do bairro primitivo – como também o é boa parte da estrutura da cidade – fazendo um barulho inacreditável, contínuo, como num ataque áereo que nunca passa de todo.
Cidades centrais são assim.
É preciso dormir de qualquer jeito. Ou abandoná-las por outras menores – nas serras frias e verdes e vastas de Minas ou nos recantos abertos, cheios de curvas e areia fina, do litoral?
Ele pegou uma garrafinha transparente e pôs barquinhos de madeira por dentro.
As velas deles foram feitas de búzios e barbante.
Não vou conseguir sobreviver – ameaçam minhas retinas.
É desnecessário repetir seu nome. Eu o recomponho sem pressa. Os torpores todos antigos. Nunca mais ser-me-á permitido amar assim o inacessível.
Que ele me fuja assim. Que ele me fuja inteiro, pois.

terça-feira, janeiro 09, 2007


O dia está claro, suavíssimo. Não querer fazer coisa alguma. Até as leituras podem esperar. Esticar os pés na cama, morta de vontade de nada fazer.

Deslizar e deslizar.

Lembra quando você nos deu sabonete de erva-doce, naquela primeira vez em que tomamos banho em tua casa?

Pra onde vão os sabonetes, o que fazem com eles os donos da casa quando as visitas vão embora? Usam de novo? Guardam pra novas visitas? Jogam fora?

As acácias estão mais amarelas, as folhas tão verdes, quase não conseguimos abandoná-las, sair da janela, voltar a atenção pra toda uma vida por refazer.

Aqui, se vê o mar: verde na praia, branco-marfim onde quebram ondas; azul-escuro pros lados de Barra; cinza-azulado no horizonte.

Nem as frutas nem as matas nem os bichos nem as flores. O mar. As cores saem dos nossos olhos, de nosso cérebro renovado e migram pro mar. O mar faz um tapete delas, das cores que parimos e codificamos na manhã. Usamos a luz do mundo pra ver o sol melhor, já que somos brasileiros e somos tão baianos, ela diz, por que não?

Quem nos esperará do outro lado da pista?

Sabemos que ela tem saudades.

Do centro do céu sem nuvens da cidade, sem primavera, mas tão verão-abafado-quieto, ela desloca a cabeça, olho direito, olho esquerdo, o tronco todo, pra ver o mar da janela. Molha as mãos e o rosto nesta imagem. Faz café.

Bicho desencontrado tentando sobrevoar a terra de muros e concreto que não nos pertence. Embaçando as palavras, ela chora com saudades.

Não adianta estender a mão. Ela não nos notará aqui, na surdina, à espreita.

Uma pequena solidão azul. As acácias quebrando. Nosso olhar em busca dela. A vida toda pra se refazer. E o não querer morrer na manhã suave por desagulhas do amor.

terça-feira, janeiro 02, 2007


Então, a ausência.
Quando acordo, as luzes da cidade já estão acesas.
A coleção de recortes dele: pára-lamas banhados de chuvas, bacias de alumínio refletindo o sol, crianças debaixo de biqueiras, crianças nuas, alegres, molhadas, brinquedos gigantes girando num parque vazio.

Não me recordo de nenhuma pessoa em especial na cidade de origem, ando no meio das ruínas, as árvores que não voltam a crescer, o cinza-marrom-amortecido-permanente pairando sobre os esqueletos, ocupando espaço entre o resto de chão e as crateras, ando e nunca, nem por uma frestazinha de memória, consigo me lembrar de alguém.
O templo da memória. Há que se adentrar de pés nus e quentes, sem intenção de resgate, apenas implorando um sentido qualquer. Gota de chuva, raio de sol. Que quando somos assim, implorantes, a bolha do mundo acha graça e nos dá um agrado qualquer. Este: ele vem de bicicleta, cabelos assanhados, gritando meu nome antes da curva do rio. Ele vem e eu espero seu descer da bicicleta, seus braços em meu pescoço, seu beijo em minha pele, seu hálito de café-com-leite.

Então, a presença.
Quando durmo, a extensão morna de seu corpo ainda faz giros na sala. Está tudo tão claro na cidade. Olho os seus recortes: crianças na biqueira, pára-lamas banhados de chuva, brinquedos gigantes girando num parque vazio, bacias de alumínio refletindo o sol.

Em Não se vai sozinho ao paraíso, primeiro romance que integra a trilogia místico-erótica de Állex Leilla — cujo centro são as micro-...