segunda-feira, outubro 15, 2007

Outras Moradas, antologia de contos do Banco Capital, com Állex Leilla, Adelice Souza, Marcus Vinícius Rodrigues, Aleilton Fonseca e Renata Belmonte

Lançamento de Outras Moradas

TRECHOS DO LIVRO
A casa temperada de sol

Állex Leilla

As coisas não são sentidas nem ditas por mero acaso. Os rumores de que ela estava indisposta porque lia um livro de Camus saltavam pelos cantos do hospital. Pairavam até na boca do arquivista que dissera na tarde anterior só ter lido uma biografia sobre o grande gênio francês. Falou assim um tanto empolado: grande gênio francês, com aquele tom desagradável, irônico, dos que acham todas essas coisas – leitura, afetação, sensibilidade – risíveis, apenas risíveis e, por isso mesmo, dispensáveis.
Isabel, ele pensou em definir de uma vez aquela história, você já está passando da hora de morrer.
Podia?
Estremeceu, balançando os ombros.
Veja bem: ser homem não é fácil, meus caros, não é nada fácil, vá entender.
No refeitório, podia-se ouvir, entre um comentário e outro dos médicos, preocupados com detalhes técnicos de cirurgias, atendimento, prazos, medicação, um escapar à toa de impressões acerca dela, de Isabel:
– Você acredita que ela disse à supervisora que não poderá vir trabalhar por causa de um livro que está lendo?
– De Camus?
– Sim, de Camus... Quer dizer, o berçário fica às moscas por causa de um livro de Camus... Formidável...
– Ah, eu não espero mais nada dessa moça... Sinceramente...
[...]
Toda manhã pensar nisso e, no correr do dia, sem coragem, esquecer.
Ele fazia a barba no automático. Era preciso se apressar. Na hora do enxágüe, fechava os olhos, pausa necessária para reter a imagem perfeita da felicidade: Isabel tranqüila, de camiseta e calcinhas brancas, pés descalços, cabelos presos, subindo as escadas da Casa Temperada de Sol. Ou ela lavando os pratos e perguntando, tão graciosa, por que você só usa as camisas por fora das calças? Ou ainda: ela de bruços na cama. Líquida na amplidão da cama. Olhos caçando ternura sem saber que caçavam mesmo isso: ternura. Queria congelar aquele instante num potinho de vidro, esquartejar o instante em mil pedacinhos de luz, feito vitrais ou interior de caleidoscópio, para poder, séculos mais tarde, quando já estivesse de horas contadas, moribundo num leito de hospital – podia ser até mesmo aquele, ao qual ele dirigia tão mal e subjetivamente, por que não? – tirar o vidrinho do bolso e espiá-la derradeiramente: vítrea, cada parte da pele transformada em mil partezinhas da pele; cada brilho do olho, uma infinidade de brilhos do olho; mais calor que corpo; mais cristal que palavras. Era possível retê-la tão multifacetada assim?
Caramba, precisava se decidir logo. Ou ficava com Isabel e sua inaptidão para a vida ou...
Quer dizer, não, assim não. Só de pensar que estava chamando a mulher de sua vida de “inapta” lhe vinha um calafrio.
Haveria de ser sempre assim: avança e retrocede, avança e retrocede, como num filme em que se perdera a mão?
Pois é. É a vida, não?
Realmente?
Repensou melhor: ou a aceitava sua e, ao mesmo tempo, da vaguidão, das estrelas, ou a mandava ao inferno duma vez. [...]
***
Uma rua sob as árvores

Marcus Vinícius Rodrigues

— Mora gente aí, mãe?
A menina enfiava a cabeça por entre as grades do portão, curiosa. Apontou a estátua de mármore no centro da varanda, uma deusa grega, e perguntou alguma coisa sobre o anjinho que puxava um pano que mal cobria a mulher. Sua mãe poderia ter dito que não era um anjo, era o próprio deus Eros brincado com a deusa Afrodite. Também poderia ter falado dos dois leões cinza que seguravam postes de luz na parte de baixo da escada. Lúcia não disse nada. Ela ainda estava presa à primeira pergunta, que a arrastou para muito longe no passado, quando outras crianças perguntavam a mesma coisa.
— Aí não mora ninguém.
Era isso que ela dizia pro irmão quando ele perguntava a mesma coisa. Sempre que podiam sair do prédio para a rua, passavam pela frente da casa. Nunca tinha ninguém, mas estava sempre tão limpa e arrumada. Não era como outras casas da rua, destruídas pelo tempo. Do lado mesmo ficava uma assim, que mais parecia um depósito. Outras casas viraram museus. João vivia pedindo para entrar na casa, mas ela não deixava. Era mais velha. Sabia ser responsável. E o irmão só tinha essas idéias por causa de André.
— É claro que mora gente aí. Eu já vi. Outro dia entrou um carro. Lá de casa eu vi.
André morava num prédio mais próximo e até podia ter visto mesmo. Lúcia não se rendia.
— Claro que entrou um carro. A casa tem dono, seu bobão, mas ele não mora aí.
Essa era uma conversa de todos os dias, na vinda da escola, na hora de ir comprar pão, na ida à sorveteria da Graça. Ela defendia que a casa era deserta apenas para poder se imaginar dona de tudo. Adorava os arcos que se formavam no alto das colunas da varanda. Adorava a Afrodite e seu Eros. Só não gostava dos leões. Um dia vou mandar tirar esses leões, ou pelos menos mandar pintar de branco. Ela achava que a casa devia ser toda branca e não aquela cor meio rosinha meio bege. A única cor seria daqueles vidros no alto das janelas de cima tão vermelhos que chega doía ver. A casa seria branca como um palácio das Arábias, como o da princesa Jasmim. Ela seria a princesa desse palácio. Desde pequena sonhava assim. Quando conheceu André, com sua pela morena, viu na hora que ele podia ser o príncipe mágico dos seus sonhos, como Simbá ou como Aladim. Mas ele era tão bobo. Era quase um ano mais velho que ela, mas parecia ter a idade de João. Os dois juntos eram intratáveis. Foi André que ensinou João a andar olhando para cima. Os dois seguravam nela e iam andando e olhando para o sol entre as árvores que cobriam a rua. Apostavam pra ver que não chorava da claridade e nem tropeçava na calçada. Meninos. [...]
***
O cego e eu
Adelice Souza

Eu andava distraída, pela alameda das árvores, a caminho de casa, quando vi o cego. Ele tentava atravessar a rua bem em frente à antiga casa onde eu morara. Balbuciava algo quando eu me aproximei no intuito de ajudá-lo a chegar ao outro lado da rua. Falava alto, gesticulava, balançava a bengala no ar, agitada, como se quisesse bater em alguém invisível que estava à sua frente, como se quisesse se defender deste outro. Foi neste momento que percebi que o pobre cego ouvia vozes, como um oráculo às avessas, profetizando destinos ruins, seu caos. Quis dizer-lhe que não havia ninguém ali. Mas não podia: ver a dor do cego na sua luta com o que inexiste, deixou em mim um estado silencioso de perplexidade. Não podia fazer mais nada. Ele conversava com o vazio, gritava com alguém que não existia. Não consegui seguir adiante, era um domingo lindo de sol, eu voltava da praia na minha caminhada matinal e o meu rumo foi obscurecido por aquela presença cega. Porventura haveria uma forma que eu pudesse lhe dizer que não havia ninguém ali a incomodá-lo, mas talvez não estivesse ao seu alcance acreditar em mim, crer no que os meus olhos viam e negar o que ele mesmo ouvia. Eu, também convicta em meus princípios, intuições e sensações, não deixaria me levar pela percepção de um estranho, mesmo que este estranho tivesse olhos e eu não. Ele estava certo, eu estava certa e nenhum dos dois podia fazer nada. Ele queria ver alguém ali, a dor era a dele, o gozo era o dele, a falta preenchida pelas vozes e pelas imagens era dele. Isso não era problema meu, aceitei. [...]

Um comentário:

  1. Olá, Állex.

    Li a pouco esse livro e achei seu contoum dos melhores. Gosto de fluxos de pensamento e diálogos misturando-se. Gostei do estilo.

    Abs,

    Álvaro.

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