sábado, junho 30, 2007

"Anankê" (trecho)

[...] Sem sonhos.
Como sempre.
Ir embora, ir embora, é tudo que sempre quis.
Apesar das moscas, das muriçocas e do calor, nunca viu lugar pra ter mais borboletas amarelas do que ali...
Elas ficam sobrevoando as flores dos flamboyants.
As borboletas amarelas de Bom Jesus da Lapa.
Todos os flamboyants estão carregados.
De flores, delas.
Na Manoel Novais, antiga Lauro de Freitas, ela pára.
Impossível não parar pra ver os flamboyants florindo o chão de vermelho. Senta no chão colorido.
O calçamento ainda não está quente.
Escreve qualquer bobagem.
A voz dele chegando nítida: há alguma coisa atrás dos seus olhos que eu nunca vi...
Cabeça inchada de tanto espaço vazio.
Vou embora antes do ano novo entrar.
Como é difícil escrever com o ônibus em movimento.
A sensatez que ele deu sopra o ar em seus ouvidos: escrever feito louco pra ver se, de repente, alguém vem abrir a porta do casulo...[1]
Isso sim, nunca passa.
O tempo também não.
Só habita fora do corpo por necessidade quase cega de ver o que não conhece. Comer poeira, vento, chegar no porto de mãos vazias e inventar partidas: caralho, que saudade desse mar...
Sabe lá porquê.
Ela o ama.
Ela o ama tanto.
Entorpecida de todas as formas mínimas que o trazem de volta pra vida, e isso, como sabemos, é amar no escuro, é amar sem objetivo, é deixar o tempo morrer.
Quando procura o verbo ou a isca, ele evapora.
O lixo de sua pele e o medo de envelhecer.
O lixo do país e das pessoas que não interessam mais.
O lixo dos sonhos, as neuroses, as tormentas mentais.
Sou doente, repete quando chega numa cidade diferente, quando abandona mais uma cidade: iguais, sempre iguais.
Quando as pernas param sem vontade de ir.
Barulhinho de água nos poros.
Abre os olhos: não há.
Lá embaixo lavam calçadas.
Toma sorvete e acha muito ruim.
Era de frutas cristalizadas, mas tinha gosto de pirulito da infância.
Faz tempo.
Horas talvez.
Ele está com ela, ainda e sempre, falando, cantando.
Está com ela e também lê Saramago, também lê Florbela Espanca, Carlos Anísio Melhor e Rimbaud.
Não saber continuar.
A dispersão, a dispersão...
Pensa na voz dentro do corpo.
O escuro de uma voz dentro de um corpo...
Água gelada descendo pela garganta.
Tem ganas.
Quando o vê indo embora, de olhos fechados e falho de explicações.
Num acidente de carro.
Vozes estranhas avisam: o ônibus chocou-se com um caminhão.
Ele foi o único que não sobreviveu.
De pancada na cabeça.
Pescoço separado do resto do corpo.
Ônibus da empresa Novo Horizonte.
Sabe de antemão que a letra vai sair sempre torta, e, assim como as palavras, como toda a estrutura da história, ninguém irá entender.
As músicas que ele fez pra ela não foram gravadas.
Saudade, saudade, outra palavra saindo torta.
Ela tem medo de não conseguir.
Continuar ali, correndo entre dias e imagens.
Ligar pra um telefone mudo em Bom Jesus da Lapa.
Um telefone que chama ao deus-dará.
A mãe e as irmãs dele se livraram da casa?
Por que é que ninguém nunca atende?
Ele saiu.
Está dormindo.
Ainda não chegou de Conquista.
Essa doença é corajosa.
Faz com que ela ouça nitidamente:
– Não, querida, ele não está.
Sua doença é continuar procurando onde ele não mais habita, onde nunca habitou.
Tudo que não tinha coragem de fazer antes, faz agora, mesmo sabendo que é em vão.
Enumera lápides e lápides no Campo Santo.
Ouve informações vazias de funcionários que não a entendem.
Morreu na estrada de Pojuca e foi enterrado aqui, em Salvador?
Sim.
Em 27 de dezembro de 1987.
Ele era órfão de pai.
Ele era meu namorado.
O quê? Só tinha 20 anos?
Mas você não tem a rua e o número?
Não.
Sequer sabia que num cemitério havia coisas tão marcadas assim.
Tomando os nervos.
Invadindo como um obsessor: o olhar, a voz: vou sem culpa pra algum lugar, talvez a luta faça eu crer que ante os olhos há tanto querer...[2]
Não sou de pedra pra agüentar isso, ela se desespera, não sou de pedra, porra, vá embora de verdade, me deixe em paz.
Já sabe que a memória é um campo de lixo.
Todo dia os caminhões que trafegam dentro dos olhos, da língua, do peito, do sexo, estacionam na entrada e descarregam os momentos, os conheceres inúteis.
Se não houvesse vento forte a cada intervalo de tempo, poder-se-ia ir lá, na entrada, e organizar em baldes ou em latões o lixo diário.
Mas não, os vendavais são constantes.
Misturam o que é perecível com o que não é.
Desfigura os cheiros: os odores se complicam por dentro.
Ele usava um perfume de sândalo, e tinha a pele estranhamente febril.
Não, não era assim.
Ele usava qualquer coisa forte, masculina, meio madeira velha, meio ervas molhadas de chuva.
A pele esquentava era quando ele bebia muito...
Qual era mesmo o perfume que ele usava?
Ela derruba todas as cartas e poemas deixados pela mão dele.
Qual?

[1] Carta de 11. 11. 87: Marquinho.
[2] Sem título: Marquinho.

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