quinta-feira, março 18, 2021

Em Não se vai sozinho ao paraíso, primeiro romance que integra a trilogia místico-erótica de Állex Leilla — cujo centro são as micro-histórias de homens e mulheres buscadores do Livro-Real —, conhecemos Micael Rodriguez, um sujeito limítrofe, que tenta se equilibrar entre o sagrado e o profano, a prudência e a luxúria, a disciplina e o excesso, a esperança e a melancolia, após sofrer uma tragédia em que perde a esposa e o primogênito. Em O mal não tem asas, segundo romance da trilogia do Livro-Real, somos convidados a mergulhar no universo de Juliano Borelli, personagem ainda mais trágico e fascinante, que funciona como uma espécie de oposto complementar ou arquirrival espiritual de Micael.
Ambientado na cidade imaginária de Nossa Senhora das Entranhas, paraíso localizado no sul da Bahia, este romance apresenta uma narrativa densa e, ao mesmo tempo, ágil, incorporando no mesmo parágrafo os diálogos do protagonista com os demais personagens, bem como com seu duplo ou demônio, a quem ele chama de parasita.
Trabalhando numa fronteira cada vez mais esgarçada entre realidade, delírio e sonho, a voz de Juliano Borelli narra seus embates entre Bem e Mal, amor e ódio, violência e delicadeza, verdade e mentira, numa busca intensa pelo resgate de seu próprio eu, outrora soterrado por uma tragédia que, vivida na adolescência, o marcou profundamente, cindindo sua percepção de mundo. Escritor bem sucedido, homossexual, autodenominado sádico e vampiro, ele oscila entre a ironia maldosa e a compreensão epifânica da vida, sendo, muitas vezes, desafiado pelo mesmo Deus de quem ele foge, mas de quem deseja, desesperadamente, o perdão.
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sábado, setembro 01, 2018

Onírica



1. Você sabia que coleciono um mundo de sonhos e de pesadelos contigo? Sim, pencas deles. E quem quer saber de sonhos?, dirá você. Ninguém, eu sei. Alguns são chatos de doer na alma, outros, bem, eu diria que há outros que são, no mínimo, curiosos. Quando tenho pesadelos contigo, quase sempre estou presa nas tuas rochas cinzentas. Dois blocos que avançam, feito abas de sanduíche, prometendo fazer de mim um recheio sangrento. Por alguma razão que, imersa no sonho, desconheço, subo o teu Morro e, desastradamente, caio nessa armadilha. Mais um pesadelo com aquela Velhota, murmuro ao acordar.

2. Por vezes, o cenário muda e, em vez do Morro, estou nadando no teu Rio. Aparentemente sei nadar e aparentemente tudo está em paz nas águas barrentas do São Francisco, mas não tarda a acontecer de:
— eu beber água demais;
— perder os movimentos do corpo;
— um pássaro vir bicar meus olhos;
— entrar em desespero;
— me afogar.
Que agouro!, reclamo, prevendo um longo dia de mau humor.

3. Há um sonho mais chato ainda que esses dois, estilo Black Mirror: tenho a idade mental de hoje, mas me prenderam no corpo e no cotidiano de quando tinha 16 anos. Moro na tua Avenida Duque de Caxias, estou comendo cuscuz com ovo, namoro um poeta quatro anos mais velho que eu, que faz faculdade em Vitória da Conquista, e o relógio na parede avisa que estou atrasada pra aula. Tenho de vestir a farda, composta de camisa branca e saia azul-marinho de pregas, lembrar, irritada, que aos 16 anos odiava saias, vestidos ou qualquer arremate feminino, sair correndo, atravessar a Duque de Caxias num pulo, porque o Colégio onde estudo fica nesta mesma rua, evitar que o diretor me descubra atrasada, ralhe comigo, vá fazer queixas de mim na farmácia do meu pai. Na sala de aula, faço uma prova de História sobre a Iugoslávia, que nem existe mais, praguejo comigo, enquanto duas colegas me cutucam pedindo pesca. Tenho quase 50 anos, rumino, sabendo que está tudo errado, já sou formada, tenho meu canto, sou casada há anos, tenho até doutorado, pombas!, preciso sair desse sonho sem sentido. Só que não saio: depois da prova, alguém me dá um bilhete justamente com a letra daquele poeta que eu namorava aos 16 anos. Ele me espera na Praça Marechal Deodoro da Fonseca, porque sua faculdade entrou em greve e ele chegara à cidade horas atrás. Está tudo errado, grito dentro do sonho, esse poeta já faleceu, preciso acordar.

4. Nunca sonho contigo no tempo atual. É entre 1980 e 1990 que te acho: tuas ruas não são asfaltadas, teu aeroporto funciona, as algarobas não foram derrubadas e os flamboyants estão carregados de flores e borboletas. Mas o mais curioso não são os sonhos que tenho, nitidamente, contigo. O mais curioso são os mergulhos obscuros em que você está por trás das outras cidades. Explico: se sonho que estou viajando, o primeiro cenário sonhado só dura alguns momentos. Como numa brincadeira de cascatas ou camadas, logo percebo que aquele lugar — chamado no sonho de São Paulo, Curitiba, Lisboa, Niterói — é, na verdade, você. Reconheço tuas ruas, tuas pedras, tuas praças, teu calor, teu céu imutável de azul tão vasto.

5. Uma vez sonhei que vivia em Veneza, com meu grande amor. Nunca estive em Veneza, mas quem se importa? Sonhar não custa nada, já cantou Paula Toller. Morava em Veneza, com meu grande amor, numa casa estupenda de dois andares, onde havia uma biblioteca gigante a nosso dispor. Pois bem, feliz de estar naquele paraíso, abri o janelão de madeira dessa biblioteca maravilhosa e, pimba!, tudo se desfez. Caí na tua rua Miguel Calmon, não tinha mais que 10 anos, houvera um curto circuito nos postes e eu morria de medo do escuro. Lá vem aquela Velhota roubar meu cenário, disse comigo, saindo, abruptamente, do onírico pro consciente.

6. As casas e apartamento onde morei, nas outras cidades onde, de fato, vivi, nunca estão localizadas nos seus lugares reais. Se por acaso sonho que ainda habito um desses cantos de mundo, você logo os suga pra si. Não entendo como isso acontece, tampouco compreendo para quê, mas se me vejo naquele quarto e sala, originalmente na rua do Salete, em Salvador, não tardo a perceber que tal morada está fincada na tua Praça do Livro, enquanto aquela casa com rede na varanda, na rua Estância, em Aracaju, aparece na tua rua Itapuã. São camadas de cenários que deságuam em ti. Desimporta o tempo, tanto faz a referência concreta: se sonho com cidades, reais ou projetadas, no meio do sonho você vem e as toma pra si, num ritual que muitas vezes antevejo, mas, sabe-se lá por qual razão, não consigo evitar.

7. Hoje é teu dia. Um dos teus dias, melhor dizendo, pois não te faltam datas importantes: quando te demarcaram, quando eras arraial, quando eras vila, quando começaram tuas romarias. Hoje não sonhei contigo. Não me lembro de ter sonhado coisa alguma, aliás. Mas quem quer saber de sonhos?, dirá você. De todo modo, parabéns, sua Velhota. A gente se encontra no próximo cenário. Porto Alegre, Ilhéus, Rio de Janeiro, Sevilha, Calcutá, tanto faz. Você estará lá, na última das camadas, com tuas ruas anteriores ao asfalto, tuas algarobas já derrubadas, teu aeroporto que hoje inexiste, teu céu azul tão vasto e tuas eternas borboletas, Bom Jesus da Lapa.

domingo, agosto 12, 2018

Histórias de Júlia: Orelha Completa


Aos que já compraram o romance Histórias de Júlia, de Suênio Campos de Lucena, e aos que ainda irão adquiri-lo, peço que desconsiderem o texto da orelha, assinado por mim, pois está "entrecortado" nalguns parágrafos. Não é culpa do editor nem do autor. Eles me pediram uma orelha em 15 linhas. Mas eu não consigo escrever sobre um romance em 15 linhas. Escrevi 30. Esquálidas 30 linhas que, a meu ver, dariam ao leitor uma visão geral do livro (é o que uma orelha deve fazer). Tanto Suênio quanto Gustavo me pediram para cortar o texto original, entretanto, eu estava em processo de escrita de um artigo para minha progressão de carreira a titular na UEFS, e não o fiz. Agora, ao abrir o livro, percebi que alguns cortes tiraram a lógica do que eu pretendia expor. Por isso, deixo aqui o texto completo. Vocês verão que, na origem, não sou tão fragmentada assim.

Se você pudesse indicar um livro para salvar a vida de uma pessoa, qual seria? Livros não salvam vidas, você dirá. Calma, depende de nossa definição do verbo “salvar”. Na concepção de Júlia, personagem central do romance de Suênio Campos de Lucena, “salvar” equivale a se autoconhecer e, a partir desse domínio de si mesmo, ser capaz de se transformar no ator principal de sua própria vida.

A graciosa tese da personagem — órfã, inquieta, adolescente e ainda virgem — foi aprendida com o avô, amante de literatura, que desde cedo a introduziu no labirinto da leitura. Lidando com uma realidade duríssima para uma menina tão sensível, na imaginária Miosótis — que vai lembrar ao leitor muitas das cidades do interior do Brasil —, Júlia atravessa situações complexas como preconceito, suicídio, rigidez de costumes, limitações culturais, homofobia, violência, inveja, mesquinhez, machismo, perda da inocência, descobertas sexuais, entre outros temas que são abordados no romance.

Contextualizado nas décadas de 1980-90 — profícuas, mas ainda pouco exploradas na ficção nacional —, Histórias de Júlia é um romance cujo narrador já está distante o suficiente daquilo que viveu e pode recuperar o melhor dos fatos, mas sem deixar de dialogar com aspectos do vivido que não estão necessariamente na memória da protagonista, todavia, complementam o contexto, quer enriquecendo-o, quer justificando-o. Um exemplo dessa técnica de narrar para além do que o personagem realmente vivenciou, permitindo que o leitor conheça também outras realidades paralelas, pode ser percebido logo no segundo parágrafo do livro, quando Júlia nos conta que estavam em 1989, mas não se ocupavam de conversar sobre o muro de Berlim nem acerca da primeira eleição direta para presidente no País, após anos de governo militar. Nessa e em outras tantas passagens, o romance mescla uma macro visão do cotidiano das pequenas cidades brasileiras nos anos de 80-90 às aventuras de uma menina quixotesca, que vê muito, ouve demais, fala demasiadamente, e sonha resolver os problemas do mundo com um bom livro — espelho que fará com que o outro apreenda nuances tão sutis e tão contraditórias da condição humana que, se explicadas por outra via, que não a literária, jamais funcionariam de forma tão cabal, como Júlia deseja.

Állex Leilla

domingo, setembro 10, 2017

Paulistânias II



1

Você deve esquecer que dormiu mal, que dorme mal há semanas, desde que se mudou pra cá. Esse negócio de deixar o negativo de lado (quiçá embaixo da cama), começar com o positivo (oxalá, seguir com ele até o fim), é básico, você bem sabe, então, por que não pôr em prática esse velho saber? Levante bem, levante leve. Se alongue toda antes de ir à sala abraçar o homem mais belo do mundo, que já fez café e já está no canto dele, a escrever versos, aqueles versos que, mais tarde, você amará conhecer. Para que o banho seja perfeito, além de a água estar preferencialmente fria, você também pode ouvir dez ou quinze vezes To Vals Tou Gamou, de Eleni Karaindrou. Há duas moças tagarelando embaixo da janela, mas nada de querer jogar o sabonete na cabeça delas. Concentre-se na música, tome seu banho. Se necessário, repita a canção.

2

Você deve sair de mãos dadas com seu grande amor. Constatar que a cidade está bastante esvaziada por causa do feriado da semana da pátria. Almoçar no vegetariano da Alameda Jaú (se chama Ser a fim). Ao caminhar de volta à Alameda Casa Branca, você deve reconhecer que esses pássaros rodopiando em cima do Parque Siqueira Campos são os mesmo capetinhas que cantavam às 3h30 da madrugada, zombando da sua falta de sono. Mas atenção: nada de amaldiçoar os pássaros, pois esses, todos sabem, são inocentes até que se prove o contrário.

3

Peguem o metrô em direção à Vila Madalena. Não há quase ninguém no trem. Vocês podem se sentar lado a lado. Um dos dois fará um comentário engraçado sobre metrôs e ambos se recordarão da viagem a Portugal. Desçam no Sumaré. As ruas estão ainda mais esvaziadas do que as que percorreram minutos atrás. Falem de diferenças de costumes nas cidades brasileiras, andem cerca de 20 minutos até à Luís Murat, 40. Antes, serão parados por um casal cheio de sacolas que desejará informações sobre o Beco do Batman. Não é grande a distância, você sabe, porém está quente, 28 graus, e você veio de botas, por isso, a caminhada não lhe parece nada interessante. Você vai se perguntar por que diabos calçou botas, se sabia que estava quente, se sabia que iam andar, mas logo se lembrará de que acordou se sentindo mais baixa do que o normal. E, claro, quando se acorda mais baixa do que o normal, existem apenas duas saídas: o suicídio ou usar botas. Você não tem mais idade pro suicídio, de modo que lhe restaram as botas. Não são altas, mas dão a sensação de que você está mais alta e isso é o suficiente. Também não são novas as botas e, até ontem, eram confortáveis. Porque estão a se comportar como novas é prova de que tudo muda, o tempo todo, no mundo (conforme cantou o filósofo Lulu Santos, muito bem copiando Vinícius de Moraes).

5



Como o Patuscada ainda está abrindo, encontrem o poeta que vocês vieram encontrar e andem mais duas quadras em busca de um café. Vocês verão muitos botecos com cadeiras na porta e outros bares mais chiques, até se depararem com um lugar fofinho chamado Lá Na Venda. Tomem café com bolo de milho verde (você), capuccino com pão de queijo (seu amor) e capuccino com quidim (o outro poeta que está a acompanhá-los nesta tarde). A conversa vai deslizar por literatura, vida acadêmica, a pobre situação intelectual dos cursos de Letras, equívocos da crítica e amigos em comum. Voltem pelo Beco do Batman, onde muita gente tira foto, e tirem também algumas. Retornem, sem pressa, ao Patuscada.

6

Fim de noite, voltem de Uber pro flat, mas parem antes no Bella Paulista pra comer algo, afinal, vocês beberam duas garrafas de vinho e não é bom dormir de estômago vazio depois de beber duas garrafas de vinho. O Bella Paulista está com fila de espera e, obviamente, vocês não são o tipo de casal que fica em fila, disputando mesa. O jeito é levar algo pra comer em casa. Peguem suco, umas catarinas salgadas (de queijo e palmito), outra doce (de nozes e maçã) e fujam logo desse troço. São somente três quadras de distância, vocês podem ir andando, observando o clima de fim de feira da Avenida Paulista, às 1h20. Parece uma Carlos Gomes ampliada, você diz. Bastante sinistra, retruca seu grande amor. Um casal gay passa de mãos dadas e, atrás dele, quatro boyzinhos fazem comentários ridículos.

7

Se não consegue dormir, não fique com raiva nem rumine palavrões pela casa. Esqueça. Ligue na Netflix e assista, ao lado de seu grande amor, a The Butterfly's Dream, de Yilmaz Erdogan (2013). Filme triste sobre dois poetas turcos que morreram esquecidos. Delicado e trágico, consegue mostrar a experiência de quem nasceu com o vírus da escrita. Ao contrário da maioria de filmes sobre poetas ou escritores, conhecidos ou não, em que a literatura é um dado biográfico em meio aos outros acontecimentos que perpassam a vida dos sujeitos, neste, a poesia é o alicerce onde se desenrolam dores, amizades, as descobertas, o cotidiano e todas as demais relações deles. É baseado em fatos reais, que remotam à Segunda Guerra, quando a Turquia instituiu uma lei obrigando todos os homens a trabalharem nas minas do país. Os poetas esquecidos são Rustu Onur e Muzaffer Tayyip Uslu, além do professor deles, Behçet Necatigil, que também é poeta e o único dos três cujo talento é reconhecido em seu país. A julgar pelos versos que aparecem no filme, são ambos verdadeiramente poetas (ainda que se dê um desconto de tradução e legenda).






quinta-feira, setembro 07, 2017

Ciranda-cirandinha




Contei-lhe o sonho que tivemos com ela: estava nua, presa numa casa feita de cristais e gelo. Ela respondeu que havia uma casa assim no filme do Super-homem.

— Qual Super-homem? O do Christopher Reeve? — indaguei.

Ela suspirou, impaciente:

— E por acaso existe outro Super-homem?

— Milhares. Eu já vi pelo menos uns sete.

Ela arregalou os olhos:

— Você conhece sete Super-homens?

Confirmamos. Talvez até mais.

— Não, você está maluco. Só existiram dois de verdade. E ambos eram o Christopher Reeve.

— Não, senhora! Há muitos outros. Com a mesma origem, a mesma roupa, poderes iguais, idem os problemas, ibidem os olhos azuis e a namorada jornalista.

— Mentira, você está inventando.

Não, não estávamos inventando. Havia um canal a cabo, não lembramos direito o nome, mas havia, onde passavam um Super-homem muito jovem, muito confuso. De olhos azuis também. Nem se sabe Super-homem ainda, está a se descobrir.

Ela nos olhava, perplexa:

— Como assim um super-homem que não sabe que é Super-homem?

— Exatamente. É uma série que se reporta ao início de tudo. Esse rapaz está se descobrindo ainda. Aquela velha história da jornada do herói... É um super-homem adolescente.

— Mas era só o que me faltava! E você assiste a este troço?

Assistimos, certa feita. De onde tiraríamos tais detalhes, se não víssemos ao menos alguns episódios? Vimos nalgumas tardes ociosas, é certo. Mas desistimos no meio da temporada. Era cansativo. De qualquer forma, o que queríamos com tal exemplo era justamente lhe mostrar que, ao contrário de sua mania de fixar determinadas referências como únicas, existiam muitos super-homens espalhados pelo mundo. Nós conhecíamos cerca de seis, quiçá sete, e olhe que nem éramos da geração-quadrinhos, como ela.

— Que absurdo! — ela protestou, magoada. — Sete super-homens! Com certeza, devem formar um bom rebanho de cornos.

Uma qualidade de nossa amiga era fazer comentários imprevisíveis assim. Gargalhamos juntos, enquanto ela inventava apelidos, posições e até cenas esdrúxulas para se vingar dos sete super-homens que vieram bagunçar sua compreensão de mundo. Afinal, nos esquecemos completamente do sonho com ela: nua, presa numa casa toda feita de cristais e gelo. Como no filme do Superman.

segunda-feira, setembro 04, 2017

Paulistânias


(Vista do flat onde ora me escondo, em SP)

1

- Você é vegetariana e fuma?
- Sim, porque geralmente os cigarros não têm carne.
- Mas fumar faz mal à saúde.
- Tudo bem, não sou vegetariana por causa da minha saúde.
- É vegetariana por quê?
- Birra. Mania. Falta do que fazer.
- Mas isso não tem sentido!
- Pois é. Não ter sentido é um dos pressupostos básicos da vida. Com o tempo piora.

- É verdade que você deixou de ser de esquerda pra ser de direita?
- Exatamente. Em breve deixarei de ser católica pra ser muçulmana.
- Não entendi sua resposta.
- Ah, mas eu entendi perfeitamente sua pergunta.

- É verdade que você lançou um romance com 600 páginas?
- Não, são apenas 587.
- Nossa! E você tem tanto assunto pra falar assim, Állex?
- Não tenho não, na verdade, vou escrevendo um monte de idiotices até encher as páginas.
- ?!?!

- Você sabe o que aconteceu com as farinhas, pois não encontro nenhuma nas prateleiras, nem mesmo aquelas ruins, caroçudas e fiapentas?
- Farinha de quê?
- Farinha normal, torrada, pra se pôr na comida.
- Tem de milho, na terceira fila, à esquerda.
- Obrigada, mas de milho não serve.

- Precisava vir morar, temporariamente em São Paulo, pra me dar conta de que sou baiana e não consigo comer sem farinha.
- Você não sabia que era baiana?
- Sabia, mas nunca teve qualquer importância.
- Por que não trouxe dez quilos de farinha na mala então?
- Pois é, não trouxe!

2

"A arte do romance consiste no truque de falar sobre nós mesmos como se fôssemos outra pessoa e sobre os outros como se estivéssemos no lugar deles. E assim como há um limite para a medida em que podemos falar sobre nós mesmos como se fôssemos outra pessoa, também há um limite para a medida em que podemos nos identificar com outra pessoa. O anseio de criar os muitos tipos possíveis de herói superando todas as diferenças de cultura, história, classe e gênero - de transcender a nós mesmos a fim de ver e descobrir o todo - é um anseio liberador básico que torna atraente ler e escrever romances, bem como uma aspiração que nos faz reconhecer os limites da capacidade humana de entender o outro". Orhan Pamuk, em O romancista ingênuo e o sentimental (Trad. Hildegard Feist).


3

Em vermelho, exposição de Toulouse-Lautrec (1864-1901), no MASP. Além das casas, cabarés, camarins, retratos masculinos e femininos, e cenas entre mulheres, do artista europeu, você pode rever o acervo em transformação do MASP (Portinari, Picasso, Van Gogh, Anita Mafalti, Renoir, entre outros, que vão do século 4 a.C até 2008). Trata-se de uma exposição semipermanente, nos avisa o fôlder. Um conceito bem simples, semipermanente, você sabe, né? Como tudo mais na vida. Nos outros andares tem Wanda Pimentel e Miguel Rio Branco. E no subsolo, Pedro Correia de Araújo, de quem você nunca tinha ouvido falar, mas é a melhor surpresa do dia, um pintor de se tirar o chapéu, com uma série de imagens de mulheres negras - vão de retratos de perfis, a nus delicados, flagras cotidianos e cenas eróticas (homo, hetero e swinguers). Alguns quadros estão tapados por um pano escuro donde se lê: contém cenas inapropriadas para menores de idade. Pedro Correia de Araújo, nos informa o curador no painel, viveu entre os séculos 19 e 20, entre Brasil e França. Apropriadíssima descoberta.

4

Message to Bears, álbum Folding Leaves. É o som que desembrulha esta tarde em São Paulo. A dica eu roubei do Face do escritor Emmanuel Mirdad, há uns dias. Como sempre acontece quando roubo do varal alheio, guardo nalgum esconderijo e deixo marinando, pra só depois degustar. Esse, porém, deve ter marinado demais, pois não sei se viverei mais um segundo sem essas músicas. Baixei um, dois, três, quatro álbuns... Não, não viverei mais um segundo longe desse som.

sexta-feira, junho 02, 2017

Vim ver o Roberto, cara!



1. Feira de Santana ensaia uma chuva desde cedo. Manhã de chuviscos, início de tarde nublada. Prevista por todos os telejonais e rádios, a chuva é um dos medos de quem veio ver Roberto. O Estádio Jóia da Princesa só tem proteção no palco — lugar naturalmente feito pro Rei — e nas arquibancadas especiais (um toldo branco pouco confiável). Mesmo as cadeiras azuis (R$ 380,00), as amarelas (R$ 290,00) e as brancas (R$ 170,00) não foram cobertas, assim como as arquibancadas gerais (R$100,00). As senhoras precavidas que trouxeram seus guarda-chuvas não poderão contar com eles: à porta, os seguranças revistam e tomam qualquer objeto, alegando que podem funcionar como arma. Na saída, as senhoras podem pegá-los de volta, explicam os rapazes de ternos escuros. Na saída não adianta, precisamos da sombrinha lá dentro, reclama uma senhora de vestido verde chiquérrimo, cabelos quase totalmente grisalhos. Mãe, fique calma, não vai chover, atalha a filha, voz grave, vestido prateado, sapatos de 15cm. E se chover?, teima a senhora. Não vai não, mãe, São Pedro não vai fazer essa judiação com Roberto, rebate a filha, numa segurança que faz a fila toda ficar mais calma e acreditar.

2. Sabendo que São Pedro não vai judiar de Roberto esta noite, entramos felizes no estádio, uma hora antes da hora marcada no ingresso. Os fãs do Rei têm idade variada. Nos portões podem chegar famílias inteiras, casais apaixonados, turmas de amigos que se abraçam, playboys ultrapassados com jaquetões de couro. Mulheres mais afoitas gritam que o Rei é uma delícia, outras prometem pegar uma das rosas por ele jogadas, nem que seja na unha! Os homens são mais discretos, trocam apertos de mão, dizem uns aos outros quanto tempo! Só assim te vejo, não? Pois é, rapaz, vim ver o Roberto. Vim ver o Roberto é a frase que mais se ouve entre os amigos, conhecidos e colegas que se reencontram nesta noite. Uma justificativa pra se sair de casa numa sexta-feira com ameaça de chuva? Uma razão pra se estar num estádio cheio de gente pra todo canto? Um índice de intimidade? Sim, você bem sabe que, tanto em Feira quanto no resto Bahia, não colocamos, normalmente, artigo definido à frente de nomes próprios. Por isso, vim ver o Roberto é um refrão, no mínimo, curioso, a se repetir na boca de senhores e rapazes. Até o taxista que pegamos soltou esta: nossa, tinha até me esquecido que o Roberto está em Feira!

3. Em todos os lugares, há moças indicando em qual fileira de cadeira está o número que você comprou. Quando, mesmo apontando-a, você não acerta seu lugar, as moças vêm sorridentes, a ensinar. As pessoas chegam aos seus lugares e cumprimentam a fila inteira, como se fossem vizinhos, amigos, conhecidos. Vim ver Roberto com meu poeta, e, fora uma colega de trabalho com quem me bati e uma amiga de quem me desencontrei, não conheço mais ninguém por perto, mas tanto eu quanto João Filho apertamos as mãos estendidas e respondemos aos boas noites calorosos de quem chega às cadeiras amarelas. Ou é um hábito feirense ou é porque todo mundo veio ver Roberto, penso comigo. Sim, uma dessas coisas, quiçá, ambas entrelaçadas.

4. Nunca assisti a um show do Rei. Não me pergunte a razão, pois não saberei lhe dizer o motivo dessa minha estupidez. Há alguns anos, prefiro a varanda da minha casa, e só me desloco pra ver Morrissey, nas poucas vezes que ele decidiu vir ao Brasil. Morrissey não tem nada a ver com Roberto Carlos, dirá você. É verdade, embora ninguém tenha lhe perguntado coisa alguma, certo? Isso esclarecido, eu e meu poeta ficamos na primeira fileira das cadeiras amarelas, porque quando fomos comprar os ingressos, os clientes credicard já haviam escolhido as melhores azuis, só restando lugares ruins, que não justificavam o primeiro preço. Meu irmão mais velho, que já viu o Rei outras vezes, nos preparou pro que podíamos esperar: a) Roberto não se atrasa muito, de 15 a 20 minutos, em geral; b) o show não tem bis; c) normalmente, dura 1h; d) ele não vai cantar Quero que vá tudo pro inferno; e) deve terminar com Sereia.

5. O show estava marcado pra 20h30. Às 21h20, o Rei entrou no palco, debaixo de uma explosão de aplausos e luzes de celulares, de terno branco, camisa azul aberta no peito, calças azuis. O show é mega em todos os sentidos. Que carisma, que serenidade. Mesmo em momentos nos quais a voz dele já não alcança as notas — são 75 anos recém-feitos —, ele dá um jeitinho... Improvisa, recita, brinca, dirige. Entre ele e o público há tanta familiaridade que, de repente, um feirense mais animado aproveitou o silêncio entre uma música e outra e berrou o convite: venha morar em Feira, Roberto!

6. E a orquestra do Rei, ave maria!, que se pode falar desses músicos? A palavra perfeição ficou pequena de repente. Tudo é límpido, tudo é denso, tudo é no quilo, tudo é fiel, como se tivéssemos as melhores caixas, os melhores amplificadores do planeta, e puséssemos aquele nosso vinil em volume máximo. O Rei é justo e festeja sua orquestra devidamente: apresenta, elogia, destaca, brinca com os músicos. Não menciona os nomes por trás da poderosa iluminação, mas é outro ponto fantástico no show. Nunca vi nada igual, nem com artistas brasileiros (no tempo em que vivia colecionando shows), nem estrangeiros. É um banho de luz — azul, dourada, branca, verde — que se acende quando começa uma nova canção, que se apaga quando o Rei a termina, e, de vez em quando, também apanha toda a plateia, como se fôssemos partir juntos, numa imensa nave espacial. De qualquer lugar do estádio, vê-se perfeitamente o rosto de Roberto, suas rugas, seu sorriso, bem como todos os detalhes do palco. Há telões, é claro, mas quem quiser pode se esquecer deles. Penso que talvez a iluminação do show do REM, no terceiro Rock in Rio, quando me desloquei prum Rio de Janeiro infernal, em 2003, chegue perto desse espetáculo. Perto, mas não supera.

7. Ouvir o Rei no meio da multidão me remete a um tempo outro, em que me sabia menina, em Bom Jesus da Lapa. Roberto foi meu primeiro amor. Minha primeira paixão. Devia ter uns nove anos, quando descobri que o amava. Lembro do dia dessa descoberta: algum bar perto de casa tocava O divã e eu não conseguia dormir. Rolava na cama, sentindo algo bastante estranho: um peso no coração, uma vontade sobrenatural de chorar. Quando punha a atenção na letra, a vontade de chorar triplicava. Por quê?, eu me perguntava, se ninguém me fez nada, ninguém puxou meu cabelo, ninguém me bateu, por quê? Antes do amanhecer, a verdade se desnudou entre as susis, as barbies, os pôneis de cabelos brilhantes e a bola dente de leite com o escudo do Vasco (presente de meu pai). Estou completamente apaixonada por Roberto Carlos, compreendi. Vou esperar o sol nascer pra ter certeza. O sol nasceu, vi que não era dia de aula, então corri à radiola e pus um disco do Rei, a fim de dirimir todas as dúvidas. A ideia era ouvir uma música sem história romântica, pra ver se aquele peso voltava tão forte. Pus Amigo, que sempre me alegrava, por causa do naipe de metais. Mas não deu nem pra chegar ao refrão: a vontade de chorar voltou arrepiando até os móveis de massaranduba da sala. Não havia mais qualquer dúvida, estava apaixonada pelo Rei. Foi um dia de olhos insones, em que evitei falar com as pessoas, em que busquei o silêncio, a paz do quarto. Não podia avisar minha descoberta a ninguém, mas já estava tudo preto no branco pra mim: eu amava Roberto tanto quanto ele confessava amar sabe-se lá quantas mulheres nas canções. À época, soube pelas revistas que o coração dele tinha oficialmente uma dona. Por isso, quando os adultos me perguntavam o que queria ser quando crescesse, eu rebatia na lata: Myriam Rios. Para ser atriz?, indagavam ao meu redor. Não, pra ficar com o Rei, eu explicava — o que, obviamente, provocava risos, quando não censuras.

8. Durante anos vivi intensamente meu amor por Roberto Carlos. Era minha paixão em todos os natais, quando ganhava seu novo disco de presente. Meu horizonte em todas as viagens quando íamos pra Santana ou Vitória da Conquista, no fusca do meu pai, ouvindo o Rei nas fitas cassetes, e todas as estradas estampavam o sorriso dele, ecoavam a voz dele, replicando seus amores feitos e desfeitos. Desenvolvia manias malucas, como quando o Cine Marabá anunciava a soirée aos casais, tendo ao fundo Na paz do seu sorriso, É preciso saber viver, Como é grande o meu amor por você, A primeira vez, Rotina, e eu anotava os títulos dos filmes e as canções de Roberto selecionadas pra propaganda daquela sessão. Ou quando alguém dizia sua canção preferida do Rei. Anotava no caderno como se diante de algo importante. Minha mãe, por exemplo — descobri num baile no Colégio São Vicente, em Bom Jesus da Lapa — não podia ouvir Nossa canção. Uma amiga pediu que tocassem essa música em sua homenagem e, surpresa, vi minha mãe chorar feito criança. Um ex-namorado de minha irmã me confessou que gravou De tanto amor infinitas vezes numa fita cassete, e guardava-a pras noites de bebedeira. Mas para quê anotava tudo isso?, você perguntará. Pois é, também gostaria muito de saber.

9. Enquanto o Rei canta, o vivido explode nalgum canto da memória. O show dura mais de 2h. Ele canta Quero que vá tudo pro inferno, sim!, entre outras pérolas como Sua estupidez, Se você pensa, Detalhes, Desabafo, Ilegal, imoral ou engorda, Outra vez, Lady Laura, Como é grande meu amor por você... Realmente não tem bis, mas ele passa mais de 15min distribuindo rosas (brancas e vermelhas), à plateia. Se despede com tchauzinho, enquanto a banda termina Jesus Cristo. Foi um prazer, diz uma família sorridente ao nosso lado, — mãe, vó, filha e filho —, estendendo-nos a mão, em despedida. O prazer foi nosso, respondemos. A multidão vai saindo, devagar, pelos portões estreitos. Lá fora, meu irmão e a esposa nos esperam pra brindarmos a noite com vinho francês e fondue de queijo e chocolate. Afinal, viemos ver o Roberto, cara!, e São Pedro, de fato, não judiou de ninguém.


Em Não se vai sozinho ao paraíso, primeiro romance que integra a trilogia místico-erótica de Állex Leilla — cujo centro são as micro-...