sábado, setembro 01, 2018

Onírica



1. Você sabia que coleciono um mundo de sonhos e de pesadelos contigo? Sim, pencas deles. E quem quer saber de sonhos?, dirá você. Ninguém, eu sei. Alguns são chatos de doer na alma, outros, bem, eu diria que há outros que são, no mínimo, curiosos. Quando tenho pesadelos contigo, quase sempre estou presa nas tuas rochas cinzentas. Dois blocos que avançam, feito abas de sanduíche, prometendo fazer de mim um recheio sangrento. Por alguma razão que, imersa no sonho, desconheço, subo o teu Morro e, desastradamente, caio nessa armadilha. Mais um pesadelo com aquela Velhota, murmuro ao acordar.

2. Por vezes, o cenário muda e, em vez do Morro, estou nadando no teu Rio. Aparentemente sei nadar e aparentemente tudo está em paz nas águas barrentas do São Francisco, mas não tarda a acontecer de:
— eu beber água demais;
— perder os movimentos do corpo;
— um pássaro vir bicar meus olhos;
— entrar em desespero;
— me afogar.
Que agouro!, reclamo, prevendo um longo dia de mau humor.

3. Há um sonho mais chato ainda que esses dois, estilo Black Mirror: tenho a idade mental de hoje, mas me prenderam no corpo e no cotidiano de quando tinha 16 anos. Moro na tua Avenida Duque de Caxias, estou comendo cuscuz com ovo, namoro um poeta quatro anos mais velho que eu, que faz faculdade em Vitória da Conquista, e o relógio na parede avisa que estou atrasada pra aula. Tenho de vestir a farda, composta de camisa branca e saia azul-marinho de pregas, lembrar, irritada, que aos 16 anos odiava saias, vestidos ou qualquer arremate feminino, sair correndo, atravessar a Duque de Caxias num pulo, porque o Colégio onde estudo fica nesta mesma rua, evitar que o diretor me descubra atrasada, ralhe comigo, vá fazer queixas de mim na farmácia do meu pai. Na sala de aula, faço uma prova de História sobre a Iugoslávia, que nem existe mais, praguejo comigo, enquanto duas colegas me cutucam pedindo pesca. Tenho quase 50 anos, rumino, sabendo que está tudo errado, já sou formada, tenho meu canto, sou casada há anos, tenho até doutorado, pombas!, preciso sair desse sonho sem sentido. Só que não saio: depois da prova, alguém me dá um bilhete justamente com a letra daquele poeta que eu namorava aos 16 anos. Ele me espera na Praça Marechal Deodoro da Fonseca, porque sua faculdade entrou em greve e ele chegara à cidade horas atrás. Está tudo errado, grito dentro do sonho, esse poeta já faleceu, preciso acordar.

4. Nunca sonho contigo no tempo atual. É entre 1980 e 1990 que te acho: tuas ruas não são asfaltadas, teu aeroporto funciona, as algarobas não foram derrubadas e os flamboyants estão carregados de flores e borboletas. Mas o mais curioso não são os sonhos que tenho, nitidamente, contigo. O mais curioso são os mergulhos obscuros em que você está por trás das outras cidades. Explico: se sonho que estou viajando, o primeiro cenário sonhado só dura alguns momentos. Como numa brincadeira de cascatas ou camadas, logo percebo que aquele lugar — chamado no sonho de São Paulo, Curitiba, Lisboa, Niterói — é, na verdade, você. Reconheço tuas ruas, tuas pedras, tuas praças, teu calor, teu céu imutável de azul tão vasto.

5. Uma vez sonhei que vivia em Veneza, com meu grande amor. Nunca estive em Veneza, mas quem se importa? Sonhar não custa nada, já cantou Paula Toller. Morava em Veneza, com meu grande amor, numa casa estupenda de dois andares, onde havia uma biblioteca gigante a nosso dispor. Pois bem, feliz de estar naquele paraíso, abri o janelão de madeira dessa biblioteca maravilhosa e, pimba!, tudo se desfez. Caí na tua rua Miguel Calmon, não tinha mais que 10 anos, houvera um curto circuito nos postes e eu morria de medo do escuro. Lá vem aquela Velhota roubar meu cenário, disse comigo, saindo, abruptamente, do onírico pro consciente.

6. As casas e apartamento onde morei, nas outras cidades onde, de fato, vivi, nunca estão localizadas nos seus lugares reais. Se por acaso sonho que ainda habito um desses cantos de mundo, você logo os suga pra si. Não entendo como isso acontece, tampouco compreendo para quê, mas se me vejo naquele quarto e sala, originalmente na rua do Salete, em Salvador, não tardo a perceber que tal morada está fincada na tua Praça do Livro, enquanto aquela casa com rede na varanda, na rua Estância, em Aracaju, aparece na tua rua Itapuã. São camadas de cenários que deságuam em ti. Desimporta o tempo, tanto faz a referência concreta: se sonho com cidades, reais ou projetadas, no meio do sonho você vem e as toma pra si, num ritual que muitas vezes antevejo, mas, sabe-se lá por qual razão, não consigo evitar.

7. Hoje é teu dia. Um dos teus dias, melhor dizendo, pois não te faltam datas importantes: quando te demarcaram, quando eras arraial, quando eras vila, quando começaram tuas romarias. Hoje não sonhei contigo. Não me lembro de ter sonhado coisa alguma, aliás. Mas quem quer saber de sonhos?, dirá você. De todo modo, parabéns, sua Velhota. A gente se encontra no próximo cenário. Porto Alegre, Ilhéus, Rio de Janeiro, Sevilha, Calcutá, tanto faz. Você estará lá, na última das camadas, com tuas ruas anteriores ao asfalto, tuas algarobas já derrubadas, teu aeroporto que hoje inexiste, teu céu azul tão vasto e tuas eternas borboletas, Bom Jesus da Lapa.

domingo, agosto 12, 2018

Histórias de Júlia: Orelha Completa


Aos que já compraram o romance Histórias de Júlia, de Suênio Campos de Lucena, e aos que ainda irão adquiri-lo, peço que desconsiderem o texto da orelha, assinado por mim, pois está "entrecortado" nalguns parágrafos. Não é culpa do editor nem do autor. Eles me pediram uma orelha em 15 linhas. Mas eu não consigo escrever sobre um romance em 15 linhas. Escrevi 30. Esquálidas 30 linhas que, a meu ver, dariam ao leitor uma visão geral do livro (é o que uma orelha deve fazer). Tanto Suênio quanto Gustavo me pediram para cortar o texto original, entretanto, eu estava em processo de escrita de um artigo para minha progressão de carreira a titular na UEFS, e não o fiz. Agora, ao abrir o livro, percebi que alguns cortes tiraram a lógica do que eu pretendia expor. Por isso, deixo aqui o texto completo. Vocês verão que, na origem, não sou tão fragmentada assim.

Se você pudesse indicar um livro para salvar a vida de uma pessoa, qual seria? Livros não salvam vidas, você dirá. Calma, depende de nossa definição do verbo “salvar”. Na concepção de Júlia, personagem central do romance de Suênio Campos de Lucena, “salvar” equivale a se autoconhecer e, a partir desse domínio de si mesmo, ser capaz de se transformar no ator principal de sua própria vida.

A graciosa tese da personagem — órfã, inquieta, adolescente e ainda virgem — foi aprendida com o avô, amante de literatura, que desde cedo a introduziu no labirinto da leitura. Lidando com uma realidade duríssima para uma menina tão sensível, na imaginária Miosótis — que vai lembrar ao leitor muitas das cidades do interior do Brasil —, Júlia atravessa situações complexas como preconceito, suicídio, rigidez de costumes, limitações culturais, homofobia, violência, inveja, mesquinhez, machismo, perda da inocência, descobertas sexuais, entre outros temas que são abordados no romance.

Contextualizado nas décadas de 1980-90 — profícuas, mas ainda pouco exploradas na ficção nacional —, Histórias de Júlia é um romance cujo narrador já está distante o suficiente daquilo que viveu e pode recuperar o melhor dos fatos, mas sem deixar de dialogar com aspectos do vivido que não estão necessariamente na memória da protagonista, todavia, complementam o contexto, quer enriquecendo-o, quer justificando-o. Um exemplo dessa técnica de narrar para além do que o personagem realmente vivenciou, permitindo que o leitor conheça também outras realidades paralelas, pode ser percebido logo no segundo parágrafo do livro, quando Júlia nos conta que estavam em 1989, mas não se ocupavam de conversar sobre o muro de Berlim nem acerca da primeira eleição direta para presidente no País, após anos de governo militar. Nessa e em outras tantas passagens, o romance mescla uma macro visão do cotidiano das pequenas cidades brasileiras nos anos de 80-90 às aventuras de uma menina quixotesca, que vê muito, ouve demais, fala demasiadamente, e sonha resolver os problemas do mundo com um bom livro — espelho que fará com que o outro apreenda nuances tão sutis e tão contraditórias da condição humana que, se explicadas por outra via, que não a literária, jamais funcionariam de forma tão cabal, como Júlia deseja.

Állex Leilla

Em Não se vai sozinho ao paraíso, primeiro romance que integra a trilogia místico-erótica de Állex Leilla — cujo centro são as micro-...