terça-feira, janeiro 23, 2007

Dores de mim (trechos)



A vida é engraçada: os objetos quebrados, mesmo colados, não formam mais um. O todo não se separa, porém, se for separado, jamais volta a ser todo outra vez. E é assim, dentro do absurdo, do inaceitável, que devemos, meio tortos, meio loucos, buscar alguma forma de ser felizes. (João Miguel)


A quentura da padaria encosta em mim.
Odeio perder plantas e não descobrir o por quê. Morte ingrata, toda a natureza recende à ingratidão.
Você murmura meu nome sem saber realmente quem sou. Diz que me quer bem sem nunca ter me conhecido de verdade. Nem desconfia: sou capaz de fazer coisas inimagináveis, magoaria até Deus se achasse preciso.
Gosto desta palavra: preciso. Posso usá-la em vários níveis, me embriagar dela.
Não adianta.
Sofro.
No meio da calçada procurando acertar o passo. No meio da calçada, procurando, procurando. Dentro da mesma atmosfera. O verde cheira a mofo. A chuva nunca vem. Lembro de filmes que dividimos juntos e seguro o choro: mulher de verdade não chora com um saco de pão quente, um quilo de café na mão.
Nada de choro. Quero ser feliz.
Caminhando na calçada. Aquela luz que descobrimos em Theo Angelopoulos está sempre por aqui e me afeta os olhos. Sentindo a quentura do forno que atravessa a parede, atravessa o tecido da blusa, toca a pele como mão de homem jamais tocou: quente, intensa.
Em plena luz do dia.
Se for mulher de verdade, não um arremedo ocidental, é claro que não, não chora. Quanto mais numa calçada, quanto mais em público. Ao contrário, faz de conta que é um dia comum. Que não há luto nem divórcio nem dor.
Da padaria pro mercado: ameixas, laranjas, bananas, tangerinas. Brócolis, cenoura, batata, alface, tomate, cebola. Alho. Não vou comprar couve-flor, na última vez mofou inteirinha na geladeira, longe da minha boca, do meu estômago, das minhas mãos.
Algumas pessoas se queixam do tempo nublado, outras dizem que preferem tempo nublado a chuvas.
Ruídos, ruídos.
Mais cores do que tato.
Uma mulher diz que está ventando demais, começou a ventar forte de uns dias pra cá. Outra responde que é melhor assim: quem sabe com o vento alguma coisa boa aconteça no país.
Todos estão com medo: juros altos, inflação, Rio de Janeiro, George W. Bush, Iraque.
Está tudo distante e escorregando, escorregando dos sentidos como se fosse um mundo miúdo espelhado numa bolha de sabão. Meus sentidos não podem apreender o interior das bolhas de sabão, não podem.
Adiante: me perdendo dentro da feira semanal de flores. Pétala branca no cabelo, refazer quadro nenhum, só exercer o pensamento, a fala mental pra espairecer. Queria comprar girassóis e querem me empurrar orquídeas: descompasso total. Desde Cervantes já era assim, a gente se queimando por dentro, eles negociando. Esquizofrenia maldita, pobre Miguel, pobre de mim.

Meu nome assalta a mente como se fosse algo externo e não parte de mim. O sopro do meu próprio nome confundindo os ouvidos, Maria, você fala, Maria Vitória, alguém chama, tão longe, tantos vãos, quilômetros, cidades, países de mim.

Não quero saber de onde sua voz nasce. Sequer sei o que é espaço, o que é chão. Eu piso fraco nos ladrilhos, mas vôo forte por dentro. Só queria rir um pouco de mim mesma quando pensei nisto: registrar-nos numa imagem que simbolizasse nossa estranheza diante do amor. Nossa inapetência. Fotografar-nos, reproduzir eu e você num clarão instantâneo, que explodisse na rua sem que o provocássemos. Uma imagem absurda, porém, luminosa, capaz de fazer dois seres estranhos se sentirem bem. Representados. Vivos. Ainda que longe, tão longe estivessem... Na insuficiência das brisas. No desejo de se arriscar a cada vendaval. O cheiro de pão quente que um dia os fez acordarem... A verde sedução das plantas que juntos cultivaram... Mas é sempre o mesmo equívoco, já se sabe: as plantas morrem nas manhãs que antecipam os divórcios, como gatos que fogem da dor. A mente, então, falha diante das pequenas mortes, pequenas mortes: jamais poderei entendê-las. Outros seres estranhos pulam pra dentro do barco sem que sejam convidados. Imagens alheias aparecem resistentes no quintal. Há uma porta gigante fechando quando se quer passar, abrindo, quando se está cansada de tentar adentrá-la... E assim, tão vaga e de repente, a dor recomeçou.
[...]

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