quinta-feira, agosto 30, 2007

[...] Ainda posso ouvi-lo terminando a última frase da única música que tocou pra mim naquela noite: “maai endlessss looove”, batendo forte nas cordas do violão, com raiva? tesão? pressa de acabar logo? cansaço?
Aquela merda de música brega.
Na penumbra do quarto, pisei sem querer na capa de um livro de David Leavitt - Family Dancing, anotei na cabeça - entropecei no cinzeiro e esparramei cinzas e tocos de cigarro pelo chão encarpetado.
Ele deixara a mala de sei lá qual viagem entreaberta, reparei. Não arrumava nada, ao contrário, ia abrindo as janelas e fechando as cortinas - o que era inútil pois o vento as espalhava de novo -, jogando toalhas limpas, um monte, brancas e felpudas, e sabonetes em minha direção.
Quer tomar banho?
Tome.
Não quer?
Não tome.
E ria num tom mais grave do que o que usava pra cantar: rá, rá, rá, rá, rá.
Quer beber?
Beba.
Apontou as garrafas na sala.
Quer comer?
Coma.
E apontava a cozinha.
Achei que ele estava fora de si e fiquei no meu canto.
Havia um quadro enorme de um rapaz sentado, seminu, cabeça encostada nos joelhos, cintura coberta por um pano vermelho. A pele era morena, um efebo, diriam os gregos, se gregos ali houvesse.
Fiquei admirando o quadro e ele veio por trás e disse em meu ouvido: ah, quer esse rapazinho lindo pra você?
Olhei-o nos olhos.
Estava de fato embriagado ou coisa pior.
Pois se fodeu, ele riu, esse rapaz os vermes já comeram há séculos, rá, rá, rá, rá.
Eu disse pra ele ficar quieto um segundo.
Piscou os olhos.
E novamente era aquele rosto inocente, machucado pela vida, seríssimo, me olhando.
Abracei-o: fique quieto que eu vou cuidar de você.
Ah, ele fez, que bonitinho! Preciso mesmo de seus cuidados, sempre precisei.
Mas saiu dos meus braços outra vez.
Sumia pelos outros cômodos do apartamento, voltava dizendo bobagens sem sentido: dou uma ameixa se você disser quantas meninas foram estupradas ontem só no Rio de Janeiro.
O quê?
Você tá maluco, cara?!
Eu nada entendia sobre meninas.
AH!!! Ele fez bem alto e irônico. Três ameixas se acertar em São Paulo e no Rio. E todas as ameixas do mundo se acertares quantas foram estupradas no Brasiilll!
Falava Brasil como os estrangeiros: breiziul.
Olhei pras mãos dele: estavam sujas de uma coisa amarronzada, estranha.
Falei que o amava, que eu não era imbecil, que o amava de verdade.
Eu sei, eu sei, ele respondeu, eu sei, querido, você é uma gracinha, soube desde que lhe vi.
Agora vamos trepar.
E me empurrou em direção à cama. [...]

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