terça-feira, dezembro 13, 2016

Série: a difícil-incrível arte de viver - parte III



PRATICANDO O ADEUS

1. Descobrir, dia após dia, que tudo aquilo que foi construído na terra do oba-oba, do mero coleguismo, da superfície dos afetos fáceis não finca raízes. Amigos de sala de aula (quando você ainda se graduava), amigos circunstanciais, amigos de afinidades culturais, amigos de enganos ideológicos onde você já não perambula.

2. Mais: descobrir que você andou a chamar de amigo pessoas que apenas gostam de livros, discos, quadros e filmes dos quais você também gosta. É perigoso entender o erro posto nisso. Mas, sim, você deve estar disposta a perceber o certo mesmo quando esse te leva ao perigo.

3. Descobrir quem sobrevive e quem se esfarela sob a máxima aristotélica: amigo é aquele com quem se tem afinidades profundas. Esses, graças a Deus, existem e são poucos e você os tem com rosto, nome e verdades na eternidade dos dedos de uma só mão. Não é desses que você ora fala, não é para esses que você está aprendendo a dar adeus.

4. Aqueles outros que pareciam tão importantes em seu passado e hoje estão se tornando a sombra de alguém conhecido num evento, alguém a quem se acena num shopping, alguém que ocupa um perfil no Facebook, de fato, jamais tiveram afinidades profundas contigo. Vocês se aproximaram devido à cegueira extraordinária da vida, e ora se distanciam por causa da clareza imperdoável dela. Então, como diria Elizabeth Bishop, "dói quase nada perdê-los".

5. Perdê-los? Não há drama, não há alarme nisso: vocês irão se cumprimentar quando houver encontros por aí. Dirão, educadamente, que bom te ver e educadamente falarão em marcar um café, um chope, sem, contudo, acreditarem nessa necessidade de marcar um café, um chope. Lembrarão, talvez, do aniversário um do outro. Podem até manter o número do whatsapp pra qualquer eventualidade social. E se acaso souberem que o outro está a precisar de ajuda, ajudar-se-ão, naturalmente, voltando depois ao conforto dos quilômetros de distância que a vida sabiamente deu de presente a vocês.

6. Descobrir mais: isso é um bem. Isso é vivo. Antes você jamais entenderia o tanto de liberdade que há nessas perdas. Que leve é poder perder o que só fez casa na superfície do passado, não? A memória, reiventada, justificada, até deu de cantar nos últimos meses.

7. Praticando o adeus, você agora tem espaço para as novas promessas de amizade que vão cercando os dedos da outra mão, ainda sem eternidade, verdades, nomes, rostos. Mas antes de abrir a porta, lembre-se: Aristóteles está com eles? Sim ou não?

Em Não se vai sozinho ao paraíso, primeiro romance que integra a trilogia místico-erótica de Állex Leilla — cujo centro são as micro-...