segunda-feira, maio 02, 2016

O homem sem qualidade



1. Nas minhas andanças pelo cinema inverossímil da vida, assisti, perplexa, a um diálogo entre duas irmãs, enquanto esperava minha vez de fazer as unhas, num salão. Nunca me esqueci desse diálogo e posso reconhecer suas protagonistas em qualquer lugar, por mais distante que esteja, hoje, da cena. Foi algo muito singular, mas quem conhece Salvador não vai se surpreender. Era um salão popular, e eu me recordo que ainda morava num quarto e sala, no Canela. Anotei esse diálogo, bem como seu contexto, em meu diário, assim que cheguei em casa, ansiosa por não perder nenhuma parte da experiência — plena de absurdos e falas tão espontâneas que logo pensei: darão um ótimo conto.

2. Não deram. De lá pra cá, tentei fazer literatura com esse diálogo uma meia dúzia de vezes. O resultado era bestinha, despido de qualquer traço da ironia deliciosamente esquisita que ouvi no salão. Revoltada com as leis da escrita — por vezes inegociáveis, quando não sádicas —, fiz aquilo que nossas avós costumavam aconselhar: larga isso de mão, menina. Pois bem, larguei! O uso máximo que fiz da história presenciada foi contá-la pra algumas amigas que, desconfiadas, riram, pensando que era invenção minha (elas nem disfarçam que pensam descaradamente isso de mim).

3. Mas ontem descobri o diálogo outra vez, por acaso, quando peguei erradamente uma agenda já preenchida e, por curiosidade, me pus a reler seu conteúdo. Você, obviamente, está aí de orelha em pé sem entender patavina. Não se preocupe, eu explico: embora eu escreva direto no laptop, jamais consegui escrever meus diários em tela. Escrevo-os a caneta, normalmente à tarde, ou, por vezes, deixo acumular dois, três dias, então, me sento na varanda, devoro uma caneca de café, dois cigarros, e repasso tudo. A mão. Em cadernos, blocos ou agendas.

4. Como assim agendas?, você perguntará. Pois é, por alguma razão desconhecida, todo ano as pessoas me dão duas, três agendas de papel. Tempos atrás, percebi que havia uma verdadeira papelaria em minhas estantes. No dia a dia, não costumo anotar nada em agendas — anoto meus compromissos mais importantes diretamente no calendário; os menos importantes, em papéis avulsos que logo jogo fora —, então, foram se avolumando agendas de quatro, cinco anos atrás, intactas, algumas já mofando. Resolvi usá-las pros diários e, a partir daí, tudo ficou mais dinâmico, pois quando acabo uma, logo tem mais quatro ou cinco à espera (as pessoas continuam a me dar agendas em novembro, vá entender).

5. Muitas vezes, por preguiça, acabo um diário e me esqueço de colocá-lo na caixa, encerrando-o no limbo das traças e do mofo (meu apartamento é muito úmido, mas já decidi que o amo e não vou me mudar daqui). Quando largo os diários-agendas pelos cantos, Luciene, nossa empregada, que está comigo há mais de quinze anos, os guarda nalgum lugar que ela considera adequado. Pode ser na estante dos livros de teoria e crítica, ou na de romances e afins, no meu criado, atrás das bolsas ou de uma pilha de CDs que por acaso eu disse pra ela não mexer. Nas estantes de poesia ela nunca os põe — provavelmente porque já entendeu que são as estantes de Seu João.

6. Me deparei com o diário-agenda na estante e logo o julguei novo, fui abri-lo pra iniciar novas anotações. Mas, surpresa!, ele não apenas estava preenchido, como era muito velho. De onde brotou esse troço?, foi o que pensei, sem compreender a razão de não estar na caixa dos diários, dormindo com os outros. Devia estar há anos ali, enfiado entre o I Ching (que sempre tive preguiça de consultar) e a biografia de Thomas Mann (que jamais terminei, porque o sujeito biógrafo fala mal do objeto biografado, e eu tomei um ódio mortal dessa criatura que ousa falar mal de Thomas Mann). Folheei o diário, curiosa pra saber que gente era eu nesse mundo pretérito, e me deparei de novo com esse diálogo.

7. A manicure trabalhava e repreendia a irmã (que me pareceu senão a caçula, ao menos mais nova do que sua repressora). Uma era negra e forte, a outra, dessas morenas claras, pequenas, tipicamente baianas. A mais clara e mais nova estava chorosa, sentada num banco. O salão estava quase cheio, mas ambas ignoravam isso. Quando entrei, a conversa já rolava, e a mais velha dizia: — Você não tem que conversar, não tem nem que tomar conhecimento que esse indivíduo vive, entendeu? Enquanto dava esses conselhos, que mais pareciam ordens, ia tirando o esmalte da mão da cliente, que apenas sorria, sem participar da conversa. A mais moça rebateu, com voz de choro que estava pensando em ouvir o que ele tinha pra dizer. Não!, enfatizava a manicure, não tem que ouvir nada! Pra quê? Esqueça esse homem, é um traste que não serve pra nada! A irmã mais nova disse baixinho que gostava do rapaz. Gente, foi ela dizer isso e a interlocutora espumar! Parecia que ia explodir de raiva. Gostava, gostava!, reclamou, irritada, que mania de gostar! Desde pequena que você tem isso, acusou. Tudo você quer gostar! Pois não tem nada pra gostar nele, entendeu? Nada!

8. De repente, a caçula me pareceu ganhar coragem, porque respirou fundo e disse menos chorosa: — É, Edmaura, eu gostava dele, se você não entende isso... Mas a mais velha nem a deixou concluir, esbravejou um não, não entendo!, que fez o salão todo prender a respiração. Eu logo pensei que Edmaura ia bater na outra, tamanha a rispidez com que respondeu. Mas, pra nossa surpresa, ela se levantou, foi esterilizar um dos instrumentos e, de lá mesmo, a poucos passos de onde estávamos — eu no banco esperando minha vez de ser atendida por Edmaura; a irmã chorosa sentada de frente pra mim; uma cliente sendo atendida por outra manicure; duas cabeleireiras trabalhando em mais duas clientes —, começou a desenvolver uma argumentação risível na qual ela mesma perguntava e ela mesma respondia, assim:
— Eu quero que você me diga o que tem nesse homem pra se gostar, não!, me diga, vá! Ah, pelo amor de Deus! Um homem sem serventia! Por acaso é um homem bom, que fica do seu lado, te acompanha, que é parceirão ali, pro que der e vier? Não! Uma misera que não pode ir nem no posto médico contigo! É um homem bom de cama, que te dá prazer? Sim, porque às vezes o cabra dá conta lá do recado, ué!
(O salão inteiro riu, algumas fizeram aiii, vale a pena, né!?).
— Sim! — concordou Edmaura, voltando com os instrumentos e retomando o serviço. — Se você me disser que o sujeito te dava prazer, pronto! Tá explicado, tá justificado! Eu piu!, calo logo a minha boca. Entendo perfeitamente! Se o cabra é bom de cama, a gente vai fazendo vista grossa pras outras coisas. Mas não, você mesma disse que nos últimos dias quando se achegava na criatura, ele alegava dor de cabeça! Dor de cabeça!
— Mas, Edmaura! — tentou a irmã mais nova, sem sucesso.
— Dor de cabeça! — soletrou Edmaura, revoltada. Na verdade, todas nós no salão já estávamos irritadíssimas com esse homem!
— Você já viu homem ter dor de cabeça na hora do vamô ver? — perguntava Edmaura à cliente, a mim, a todo mundo no salão, ao que respondíamos em coro claro que não!
— Quem tem dor de cabeça é mulher, entendeu? Mulher! Homem não tem dor de cabeça! — decretou, Edmaura, apoiadíssima por todas nós.
— Também não é assim — disse a irmã mais moça, sem graça.
— Não é assim o quê? — rebateu Edmaura. — É assim mesmo. É um homem sem serventia. Você nunca me disse uma qualidade pra se gostar dele. É um homem trabalhador, que bota as coisas dentro de casa? Não, o infeliz tá desempregado há meses! Meses! É um homem inteligente, que sabe conversar, desenvolver os assuntos, fazer a gente passar por mulher de homem culto nos lugares? Qual! O desgraçado mal abre a boca! Quando fala, é pra reclamar e dizer que quer ir embora, quer ir embora! É um homem bonito? Sim, porque a gente pode querer ter uma visão agradável quando chega em casa, ué! Quem não quer?
Todas nós concordamos: homem bonito é um bálsamo.
— Não! A misera do homem é feio e nem se cuida, muitas vezes você se queixou que achava que ele não tava tomando banho — tornou Edmaura.
Afff!, eu pensei em entrar na discussão e fazer coro: esquece esse encosto, mulher!
— É um homem engraçado, que te faz rir? — continuou Edmaura, ela mesma perguntava, ela mesma respondia. — Sim, porque eu já fiquei com namorado somente porque me fazia rir.
— Eu também! — disse uma das cabeleireiras.
— Mas não, a misera do homem só vive de mau humor — prosseguia Edmaura. — De cara amarrada. Com raiva do mundo. Se a gente chama pra um churrasco, não quer ir, porque demoram de servir a comida, a cerveja está sempre quente, e ele se irrita. Não gosta de feijoada, porque é uma comida pesada e ele tem desarranjo. Enfim, não gosta de nada! Ah, vai-te pro diabo! Um homem sem serventia! Gostar de que nele? Não tem o que gostar! É um bom pai? Sim, porque se é bom pai pros filhos da gente, pronto!, a gente respeita, é importante, eu faria esse sacrifício por meus meninos! Mas não!, nas três vezes que você deixou a criança com ele, o peste deixou a menina se machucar!
— Mas, Edmaura! — tentou de novo a irmã, chorosa, envergonhada com os olhares de todo o público feminino em cima da falta de noção dela. Sim, porque a essas alturas, todas nós estávamos com ódio desse cara e querendo beber o sangue dele.
— Não tem mais Edmaura nem menos Edmaura — disse a outra, impassível. — Esse homem é um zero à esquerda, você não vai conversar nada com ele, nada! Acabou em boa hora. Não é homem pra se gostar, desgoste dele logo, viu?! Desgoste logo!

09. Estávamos todas horrorizadas e solidárias com Edmaura. Mas a dona do salão, surpreendentemente, disse que não era assim que se resolvia as coisas, que a irmã estava sofrendo, bastava olhar pra ver que ela ainda gostava do rapaz. É só deixar de gostar, rebateu Edmaura, imune ao rosto consternado da irmã. E por mais que tente, jamais me esqueço da simplicidade com que ela repudiou essa intervenção:
— Ele não tem o que ela gostar, entendeu? Porque não tem nada nele, é um homem sem nenhuma qualidade — sentenciou.

Em Não se vai sozinho ao paraíso, primeiro romance que integra a trilogia místico-erótica de Állex Leilla — cujo centro são as micro-...