sexta-feira, outubro 23, 2015

A granel (na íntegra)



Recentemente, o governo estadual divulgou uma lista de professores que, sendo de regime de dedicação exclusiva, estariam acumulando cargos em outras instituições. Para comprovar o crime, foram cruzados dados do INSS. A lista, estampada na mídia e redes sociais, virou bochicho nas universidades e provocou posts maldosos de alunos e pantomimas de apresentadores de TV. As matérias expunham o salário de um professor universitário com DE, chamavam atenção para os bilhões perdidos pelos cofres públicos e enfatizavam a necessidade de ressarcimento por parte dos infratores. Após uma greve de mais de 90 dias nas quatros universidades estaduais da Bahia, e dentro de um cenário de crise não somente econômica, mas, sobretudo, estrutural, essas manchetes com a denúncia dos docentes criminosos foram mais do que constrangedoras: elas trouxeram um travo na garganta até mesmo dos simpatizantes às causas das UEBAs. Foi, também, uma oportunidade para comprovarmos a eficácia da assessoria de comunicação do Estado da Bahia: para onde quer que olhássemos, lá estava a notícia, orquestrando um subtexto doloroso: você se lembra dos profissionais que há alguns meses pararam em prol de mais verbas para a educação, de respeito à autonomia universitária e de garantia da ascensão legítima dos servidores públicos? Pois é, eles acumulam cargos! Eles agem fora da lei, pessoal! Eficiente e sintético, o recado estava dado.

A lista, porém, é uma farsa: os recebimentos expostos como ilegais pela SAEB estão garantidos pelo estatuto dos servidores estaduais. São não apenas previstos pela lei, mas comprovam uma produtividade intelectual-acadêmica desses professores, pois se trata de proventos oriundos de direitos autorais, serviços prestados ao ENEM, ENADE ou aos cursos de capacitação de professores promovidos pelo próprio estado. Ao analisarmos a lista, veremos que não é uma real tentativa, por parte do governo, de coibir o acúmulo ilegal de cargos, permitindo, assim, melhor uso dos recursos financeiros destinados à educação. Longe disso, a ação se dirige para o campo do ataque à classe dos professores universitários, já tão fragilizada pelo desprezo dos sucessivos governos baianos — sejam de direita, sejam de esquerda — que nos veem, em geral, como incômodos inimigos. Exemplifico com dois casos de manipulação irresponsável dos fatos: um professor-poeta da UEFS, premiado nacionalmente, foi incluído na lista da SAEB porque recebeu R$500,00 da Academia Brasileira de Letras, como pagamento pela publicação de seus poemas numa revista. Outro professor está na lista por causa de um recolhimentos, em seu nome, ao INSS, referente a agosto de 2006, quando era funcionário de uma instituição privada, mas, detalhe!, ainda não havia prestado concurso para a universidade estadual! A SAEB não sabia que esse professor só entrou na UNEB em dezembro de 2006? A lista, enfim, está repleta de casos absurdos como esses. Esses cidadãos tiveram seus nomes achincalhados na mídia, mas ninguém no governo foi demitido ou mesmo advertido pelo erro.

Quem vive o dia a dia das UEBAs sabe que essa é só mais uma das inúmeras provas de que a educação em nossa terra é um fracasso: moral, ético, administrativo, cultural, social e pedagógico. Do contrário, não aceitaríamos tão passivamente esse ataque orquestrado pelo governo. Vejam: não estamos falando de picuinhas ideológicas entre quem é e quem não é eleitor da atual sigla que governa a Bahia. Não estamos falando de subjetividades ou simpatias, estamos falando de acusações públicas, sem provas, de uma secretaria de educação a um grupo de servidores concursados, profissionais do ensino. Pensar que tal ataque está passando em brancas nuvens, que enquanto escrevo esse texto, esses mesmos professores estão, individualmente, organizando provas para ir à SAEB provar sua inocência, que a lista adquiriu um tom de bochicho e irá desaparecer na poeira de novas polêmicas, é reconhecer que, na educação, fracassamos não somente em números, mas naquilo que é o básico do básico: fracassamos em nosso compromisso com o conhecimento dos fatos e, pior, fracassamos no interesse pela verdade. Não o conhecimento reflexivo, filosófico, histórico, cultural, que todo projeto educativo deve ter, mas o saber elementar, do que acontece e o que não acontece, de verdade, de concreto, a nossa volta.

Obviamente, o fracasso não é obra desse governo — embora ele faça sua parte para engrossá-lo —, mas fruto da nossa equivocada relação com o conhecimento. Nenhum governo — seja municipal, estadual ou federal — tem projetos concretos em prol da melhoria na educação, porque essa crise é muito mais profunda e estável do que o cenário atual possa revelar. Não há nenhuma intenção aqui de negar a gravidade do hoje e do agora: a crise nas UEBAs é complexa e preocupante, sim, e envolve problemas como falta de verbas, corrupção, negligência com os bens públicos, conflitos ideológicos etc., entretanto, a facilidade com que aceitamos a farsa da lista revela a precariedade de nossa situação. É um sintoma ou uma metáfora de como nos portamos frente à necessidade de conhecimento e formação, porque a educação sempre foi o nosso calcanhar de Aquiles. Há outros males como violência, falta de acesso à saúde, corrupção, impunidade e miséria, mas não há nada mais infeliz do que a situação da educação no Brasil. O saber não é um valor fundamental em nossa cultura, e se a saúde é administrada a quilo, a educação é a granel. Elegeram, há muito, a quantidade como fator fundamental nas políticas educacionais, em detrimento de qualquer plano ou esperança de melhoria na qualidade do que chamamos pomposamente ensino no País. Esse vetor vem de cima para baixo e distribui sua crueldade em contêineres: as escolas precisam provar em números cada vez maiores que a evasão diminuiu e a aprovação aumentou, pois assim recebem mais verbas, ainda que esses números, quando analisados concretamente revelem um contingente maior de cidadãos impossibilitados de ler e escrever; as universidades precisam provar que não excluem, que aumentaram suas vagas, que são acessíveis, embora estejam formando sujeitos incapazes de ler e escrever; os cursos de pós-graduação precisam cumprir prazos cada vez menores e aumentar o máximo possível seus indicadores de produção, mesmo que estejam lançando ano após ano especialistas, mestres e doutores incapazes de ler e escrever. Temos então armazenado esses dados simpáticos que indicam mais cidadãos portadores de certificados de ensino médio, mais sujeitos com diplomas universitários, mais pessoas com títulos de especialistas, mestres e doutores no País. Que não saibam ler e escrever é apenas um detalhe. Nos caminhões que transportam nossos contêineres educativos, o acesso cresceu, a exclusão diminuiu. Carga positiva, não?

Além da crueldade de se eleger a quantidade como balizadora da educação no País, há outro monstrinho que nos tira o fôlego: a eleição do que é menos relevante na rotina das instituições de ensino. Podemos chamar isso de desimportância do saber, de inversão de valores, de desinteresse no real processo de ensino-aprendizagem. Tanto faz. Importa perceber que qualquer assunto periférico é mais relevante do que ministrar/assistir aulas. Isso está encravado em nossos cérebros e parece tão natural que existam outros assuntos mais interessantes do que as aulas que não nos espanta mais sermos interrompidos em sala por alunos, colegas e demais seres humanos desejosos de nos dar avisos, fazer convites, passar listas, realizar performances, convocar para reuniões, eventos, assembleias, bate papo ou até mesmo vender produtos durante nossas aulas. Aulas? Não, não são tão importantes assim. Podem esperar. Podem ser suspensas. Podem ser paralisadas. Podem ser suprimidas. Não nos deixa mentir o cotidiano das nossas UEBAs: greves manipuladas por brigas partidárias em que nós, docentes, somos meros fantoches; paralisações e portões fechados a qualquer momento; discursos anacrônicos, baseados em fragmentos do Marx que nenhum de seus defensores leu de verdade; agressões múltiplas entre docentes, discentes e funcionários; preguiça mental, hipocrisia, desvontade. A briga é foucaultiana: deseja-se poder, micro e macro; poder, acima e embaixo; poder, tão somente poder. Falta verba, mas falta, antes, honestidade conosco para assumirmos que não é apenas aos políticos que o quadro caótico não interessa, a verdade é que a situação vexatória do ensino no Brasil não interessa a quase ninguém. Isso é histórico: somos uma gente a quem desimporta o conhecimento. Podemos palmilhar essa incômoda verdade em estudos pormenorizados sobre o desenvolvimento da nossa nação, desde Caminha até hoje, constataremos que, tristemente, a educação é penduricalho na pirâmide de valores de nosso povo. Podemos analisar sincronicamente os atos e falas diárias, desde o cidadão que ocupa uma vaga numa instituição pública sem se esforçar um milímetro para aprender, passando pelo profissional que não se preparou nem se sente professor, mas, por alguma razão oculta, está professor; até os pseudo-pedagogos que elaboram planos e diretrizes de ensino que já nascem corroídas por essa doença do fingimento. É um teatro de mau gosto, onde há espaço para falsas listas, marxismos, liberalismos e toda sorte de estupidez. Na UEFS, uma piada ilustra a natureza moral da crise: dizem que os gatos, habitantes do campus, fecharão os portões reivindicando rações melhores. Esse chiste mostra o óbvio: qualquer questão periférica ganha relevância em nossas universidades, enquanto nosso real interesse pelo saber raramente comparece.

P.S. Um pedaço desse texto, resumido pela autora, foi publicado no Jornal Correio, em 22/10/2015, o link:
http://www.correio24horas.com.br/detalhe/noticia/allex-leilla-a-granel/?cHash=85adc4a9d14f37701b3da1d267ad490f

Um comentário:

  1. Amiga, parabéns pelo texto lúcido e incisivo. Você alcançou o nó do problema. Você me representa!
    Super abraço!

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