segunda-feira, setembro 22, 2014

Dicionário Amoroso de Salvador, João Filho


É com muita alegria, e orgulho confesso de leitora e esposa, que convido todos vocês para o lançamento do Dicionário Amoroso de Salvador, de João Filho, dia 27/09, a partir das 18h, na Livraria Cultura, no Shopping Salvador.

O Dicionário Amoroso de Salvador integra o projeto da editora Casarão do Verbo que abrange, inicialmente, 12 capitais do País - aquelas que foram cenário dos jogos da Copa de 2014.

São chamados de Dicionários porque os temas entram em formato de verbetes, porém, se trata, na verdade, de crônicas amorosas, apimentadas, sensuais, satíricas, ácidas e poéticas acerca dessas 12 cidades.

Os olhares são pessoais, e as imagens que saltam nas páginas são frutos da relação complexa que cada indivíduo - neste caso, escritores, poetas, artistas - têm com a cidade onde nasceram e/ou escolheram para viver. O projeto é completado com ilustrações de artistas escolhidos a dedo, que dialogam muito bem com a linguagem literária. No caso de Salvador, as ilustrações são de Caius Marcellus.

Nos Dicionários, o singular se conecta perfeitamente com as percepções coletivas - em parte porque tudo faz parte do grande e infinito inconsciente coletivo e todo escritor nasce com uma anteninha grudada nele, em parte porque alguns verbetes se tornam rapidamente tradução de laços invisíveis que temos com nosso "lugar de cultura".

Nesse projeto, já foram publicados: os Dicionário Amoroso de Porto Alegre, de Altair Martins; Dicionário Amoroso de Recife, de Urariano Mota; e Dicionário Amoroso de Curitiba, de Márcio Santos. Agora é a vez de Salvador, que, modéstia à parte, está deliciosamente escrito por João Filho - não por acaso, meu poeta preferido!

quarta-feira, setembro 10, 2014

Amizades & amizades



1. Penso muito nos formatos, durações e sentidos das tantas amizades que fazemos ao longo da vida. Recentemente, tive um sonho muito esquisito, mais precisamente um pesadelo, em que me encontrava num lugar estilo fim de mundo e um fantasma vinha falar comigo. Ele me explicava algumas "regras" a respeito do que chamaríamos "vida após morte". Uma dessas regras me revoltava muito: quando mortos, dizia o nobre fantasma, perdemos todos os sentidos. De olhos abertos, me parece lógico, porém, lá no interior do sonho-pesadelo, aquilo me causava uma angústia enorme, seguida de grande indignação.

2. No meio da minha contenda com o fantasma - que tentava em vão me explicar por que não podemos ouvir, cheirar, saborear, tocar e ver, quando mortos -, percebi que, na verdade, eu o conhecia: era um grande amigo meu. Um amigo a quem muito amei e que morreu há cerca de dois anos.

3. De olhos abertos, me lembrei das primeiras e últimas conversas que tive com esse meu amigo. Poeta, professor, pai de cinco filhos, ex-bancário, ex-vendedor de discos, meu amigo era, acima de tudo, uma pessoa sincera e muito do Bem. Eu o conheci numa loja de discos, lá por volta de 1993, quando cheguei em Salvador, recém-divorciada e muito, mas muito deprê. Eu procurava um vinil do Duritti Column, não havia na loja onde ele trabalhava, todavia, ele disse que conseguiria o vinil pra mim. Estava feliz que eu gostasse de Vinni Reily, disse, sorrindo. E conseguiu. Em duas semanas, ele conseguiu não um, mas dois discos da banda de um homem só, que eu tanto procurava.

4. Seguiram-se muitos cafés em sua casa, na Mouraria, muitas trocas, tantas confissões, leituras de poemas (ele lia muito bem e recitava em público sem a menor cerimônia ou timidez), muitas invasões minhas em sua estante de livros - todos devolvidos, claro! - e uma amizade que nunca sofreu qualquer interferência das futuras escolhas dele (largar emprego, se meter com grupo de teatro, casar, ser pai novamente - ele já tinha 2 meninos quando o conheci - descasar, entrar em Letras na UFBA, abandonar Letras na UFBA, casar de novo, ir morar no interior da Bahia, ter mais 2 filhos, fazer Letras na UNEB, dar aulas no interior), nem nas minhas.

5. Não éramos grudentos, não passávamos horas ao telefone, e jamais deixamos de nos surpreender com o jeito do outro. Gostávamos de conversar e tínhamos muitas paixões em comum - Julio Cortázar, poesia, os filmes de Kieslowski, o já mencionado Durutti Column - mas não fazíamos dessas afinidades uma camisa de força. Nunca trepamos, mas dormimos juntos por duas vezes, na mesma cama, qual anjos que se esqueceram de seus próprios corpos. Eu confiava plenamente nele. Era como um irmão mais velho - ele era 10 anos mais velho que eu.

6. Gostava de seus "escritos poéticos", como ele mesmo costumava chamá-los. Ele me mandava e eu lia com prazer. Fazia comentários a meu modo: poucos, só quando achava que tinha algo a dizer. Mas gostava e continuo gostando de seus poemas. Não sei se ele gostava dos meus textos, pois nunca comentou sobre nenhum dos meus livros, embora fizesse questão de adquirir todos. Ele não comentava, eu não perguntava. Nos acostumamos a ser assim: naturalmente amigos, o que não fosse possível de dizer, fazer, ser, não seríamos, não faríamos, não diríamos.

7. Havia períodos em que ficávamos muito tempo sem nos ver, quando nos víamos, porém, era sempre uma alegria. Sem cobranças e sem chatices. Pode parecer clichê dizer isso, mas entre nós fluía uma amizade onde não havia espaço pra perda de tempo com bobagens. Fora as paixões em comum, no geral éramos muito diferentes um do outro e aceitamos isso. Quando frente a frente, eu queria saber como ele estava, ele queria saber o que eu andava fazendo. Às vezes, tínhamos muitas saudades e nos escrevíamos. Ou ele vinha a Salvador. Eu, por minha vez, andei a arranjar jeito de ir lá, em Coité.

8. Não me tornei amiga de nenhuma de suas mulheres, embora tenha conhecido algumas, as mais importantes, creio. Todavia, quando me casei de novo, ele imediatamente se tornou amigo do meu João. E isso ocorreu espontaneamente: João Filho gostou dele, ele gostou de João Filho.

9. Quase dois anos antes de morrer, meu amigo teve câncer de próstata. Se tratou no Hospital Português, aqui pertinho da minha casa. Saía da radioterapia e vinha nos visitar. Ficava um tempo, tomava um café, um suco. Depois, se ia. Às vezes, eu o questionava: por que não se hospeda aqui conosco, Zéo? Ele dizia: já estou acostumado lá (na casa de outro amigo). Isso me chateava momentaneamente, mas depois passava. Entravam conversas sobre poesia, música, cotidiano e eu esquecia.

10. Depois que Zéo morreu, tive vários sonhos com ele. Em geral, no sonho me esqueço que ele está morto. Quando acordo, lembro desse "detalhe" e me espanto com a dor que isso traz. Esse sonho do fantasma foi o único sonho distinto, os outros são todos iguais: eu acordo no meio da noite e me deparo com ele dentro da minha casa. Assustada, pergunto: que está fazendo aqui, Zéo? Ele raramente me responde. Às vezes, sorri. Me mostra coisas, papéis, desenhos, sei lá o quê - quando acordo não consigo lembrar com exatidão. No sonho, eu digo: o que houve? Você está com insônia? E ele rebate: não, Leila, eu não durmo mais. Acordo e quando acordada me lembro que ele morreu, então, vem a dor de novo. Outra e outra vez. Também o facebook está lá a lembrar que ele faz não sei quantos anos em abril. O perfil dele continua lá. Por isso, o facebook me avisa do seu aniversário, e eu primeiro me chateio, pra em seguida ficar triste.

11. Creio que minha amizade com Zé Luiz Franco foi um tipo de amizade rara: dessas que a gente não explica, não justifica, não precisa fazer esforço, nada, exceto vivê-la. E quando penso nas outras tantas amizades que também perdi - algumas não por morte, mas por desavenças, traições, decepções, ou tão somente por diluição -, vejo que há Amizades e amizades. Sim, a hierarquia, natural, fundamental, como não?

12. As Amizades com inicial maiúscula são tão naturalmente verdadeiras que qualquer coisa que falemos a respeito periga cair no clichê digno dos livros de Neimar de Barros (alguém ainda se lembra de Neimar de Barros, o Rubem Alves dos anos 80?) - é o caso de tudo que escrevi acima sobre Zéo: tudo é muito sincero, não nego, mas não adianta ser sincero, porque tudo dito/escrito resvala pro lugar-comum. E não é apenas a limitação da linguagem, incapaz de explicar a "naturalidade" ou grandeza de certas amizades, é, em verdade, a própria natureza-margarida dessas relações. Sabe margarida, aquela flor tão simples e tão viva, de pouco cheiro, pétalas tão brancas e miolo tão amarelo? Pois então, são amizades que parecem existir naturalmente, que chegam e se instalam. E mesmo quando por algum motivo maior vão embora, passeiam de madrugada pela casa: fantasma do Bem. Podemos dizer que são eternas, que têm sentido sempre renovado, que adquirem o formato de nossa própria alma. Clichês? Mas, claro! E dos bons! Tenho mais alguns grandes amigos(as) assim. Poucos, é verdade. Trata-se de uma dádiva que não enche os dedos de uma mão. Contudo, dou graças a Deus por eles/elas.

13. Há outras amizades que são na verdade grandes e/ou pequenos encontros pré-determinados. Isto é, têm um tempo de duração na nossa vida, têm um sentido, todavia, não são maiúsculas. Ficam conosco por um tempo, cumprem uma função que só a você cabe descobrir e apreender. Depois, se quebram qual porcelana ou morrem qual flor. Não teime em consertar esse troço partido! As marcas da colagem ficarão lá, o tempo inteiro, mostrando o quão frágil é esse ato de colar o que se partiu.

14. Já perdi muitas "amizades" assim. A vida costuma ser cruel com o minúsculo. Algumas eram estilo rosa: cheirosíssimas, belíssimas, mas não resistiram a um mísero vendaval. Já perdi também amizades orquídeas: exigem tanto de nós que um dia acordamos exauridos e mandamos ir... pro orquidário mais próximo. Também tive amizades flor de plástico, sabe? Mas diferentemente da música dos Titãs, essas morreram muito facilmente, até porque não eram amizades, eram relações sociais, saca "camaradagem"? Aqueles risos súbitos, aqueles comentários espertos, aquelas afinidades momentâneas, aquela solidariedade de ocasião? É sala de estar, porém, você, apressado ou deslumbrado, vai saber, insiste em levar pela mão, quer mostrar a casa toda, compartilhar o mais íntimo seu/dele/dela. Essas são as amizades minusculosas: quando acabam, e sempre acabam!, deixam um gosto podre na boca. Basta lembrar da criatura e você quer cuspir, quer escovar os dentes, quer tomar antiácido. Acha feio tal sentimento. Diz que já passou, não foi nada de mais. Rebobina, analisa friamente, vê que realmente não tinha nada a ver, no entanto, por que deixou crescer? Por que se enganaram assim? É uma sensação chata, tão chata e irracional que beira a idiotice.

15. Sabe de onde vem esse troço? Da alma enganada. Sim, Neimar de Barros diria: é a ressaca da alma enganada! Demora de passar. Amizade é coisa séria! Não troque as iniciais, não invente, não confunda, pois na próxima esquina, na próxima esquina... o que era mesmo que a peste do Neimar de Barros dizia??!!

16. Não, não me lembro o que ele escreveu. Tampouco tenho como conferir: o único livro que eu tinha desse autor ficou com uma ex-amiga, bela amiga flor de plástico, a quem eu nunca mais precisarei ver, com quem não preciso mais conviver. Trágico? Não, isso é na verdade "naturalmente" muito bom!

Em Não se vai sozinho ao paraíso, primeiro romance que integra a trilogia místico-erótica de Állex Leilla — cujo centro são as micro-...