terça-feira, outubro 30, 2007


Uma calçada

Vim pensando nisto: felicidade demais quando não mata, aleija.
Olha as flores como ficaram tortas, olha as flores, meu amor.
Os beijos açucarados, a carne mole.
Ou nem isso.
Andar faz mal à mente.
Penso: um céu de cinza tenso, entre prata e marinho e nuvens ciganas de um lado pro outro, entretendo-nos com suas danças. Penso: pimentas. Amarelas, verdes, vermelhas. Espremidas em azeite dentro das garrafas reluzindo na beira da estrada.
Onde?
Quando?
Que nada!
Tudo mentira.
Penso é no teu sexo.
Brinco que penso em nada sério. Disfarço. Sento na calçada da casa.
Aquela-essa-esta casa antiga da Vitória.
Bebo tua saliva morna de boca ainda agora mesmo acordada. Fecho os olhos durante o beijo para ver se penso menos, des-penso o pensamento de hoje-sempre, mas não tem jeito, percebo: penso no teu sexo de novo. Mesmo te sabendo puro sono, eu: dor de cabeça leve na fronte.
Acendemos cigarros.
Sentados na calçada da casa antiga.
A nicotina ameniza na cabeça tudo que é chato, inútil. Essas coisas tão previsíveis do mundo.
Vim pensando em tudo isto. Leve-solta do teu lado.
Volto a buscar o foco outra vez.
Alguns planos contigo. Casa, viagens, livros, bebês.
Coisas assim: pequenas. Mas luminosas. Como o sol na calçada da casa antiga da Vitória. Esta-essa-aquela.
Desimporta.
Andar faz bem à mente.

segunda-feira, outubro 15, 2007

Outras Moradas, antologia de contos do Banco Capital, com Állex Leilla, Adelice Souza, Marcus Vinícius Rodrigues, Aleilton Fonseca e Renata Belmonte

Lançamento de Outras Moradas

TRECHOS DO LIVRO
A casa temperada de sol

Állex Leilla

As coisas não são sentidas nem ditas por mero acaso. Os rumores de que ela estava indisposta porque lia um livro de Camus saltavam pelos cantos do hospital. Pairavam até na boca do arquivista que dissera na tarde anterior só ter lido uma biografia sobre o grande gênio francês. Falou assim um tanto empolado: grande gênio francês, com aquele tom desagradável, irônico, dos que acham todas essas coisas – leitura, afetação, sensibilidade – risíveis, apenas risíveis e, por isso mesmo, dispensáveis.
Isabel, ele pensou em definir de uma vez aquela história, você já está passando da hora de morrer.
Podia?
Estremeceu, balançando os ombros.
Veja bem: ser homem não é fácil, meus caros, não é nada fácil, vá entender.
No refeitório, podia-se ouvir, entre um comentário e outro dos médicos, preocupados com detalhes técnicos de cirurgias, atendimento, prazos, medicação, um escapar à toa de impressões acerca dela, de Isabel:
– Você acredita que ela disse à supervisora que não poderá vir trabalhar por causa de um livro que está lendo?
– De Camus?
– Sim, de Camus... Quer dizer, o berçário fica às moscas por causa de um livro de Camus... Formidável...
– Ah, eu não espero mais nada dessa moça... Sinceramente...
[...]
Toda manhã pensar nisso e, no correr do dia, sem coragem, esquecer.
Ele fazia a barba no automático. Era preciso se apressar. Na hora do enxágüe, fechava os olhos, pausa necessária para reter a imagem perfeita da felicidade: Isabel tranqüila, de camiseta e calcinhas brancas, pés descalços, cabelos presos, subindo as escadas da Casa Temperada de Sol. Ou ela lavando os pratos e perguntando, tão graciosa, por que você só usa as camisas por fora das calças? Ou ainda: ela de bruços na cama. Líquida na amplidão da cama. Olhos caçando ternura sem saber que caçavam mesmo isso: ternura. Queria congelar aquele instante num potinho de vidro, esquartejar o instante em mil pedacinhos de luz, feito vitrais ou interior de caleidoscópio, para poder, séculos mais tarde, quando já estivesse de horas contadas, moribundo num leito de hospital – podia ser até mesmo aquele, ao qual ele dirigia tão mal e subjetivamente, por que não? – tirar o vidrinho do bolso e espiá-la derradeiramente: vítrea, cada parte da pele transformada em mil partezinhas da pele; cada brilho do olho, uma infinidade de brilhos do olho; mais calor que corpo; mais cristal que palavras. Era possível retê-la tão multifacetada assim?
Caramba, precisava se decidir logo. Ou ficava com Isabel e sua inaptidão para a vida ou...
Quer dizer, não, assim não. Só de pensar que estava chamando a mulher de sua vida de “inapta” lhe vinha um calafrio.
Haveria de ser sempre assim: avança e retrocede, avança e retrocede, como num filme em que se perdera a mão?
Pois é. É a vida, não?
Realmente?
Repensou melhor: ou a aceitava sua e, ao mesmo tempo, da vaguidão, das estrelas, ou a mandava ao inferno duma vez. [...]
***
Uma rua sob as árvores

Marcus Vinícius Rodrigues

— Mora gente aí, mãe?
A menina enfiava a cabeça por entre as grades do portão, curiosa. Apontou a estátua de mármore no centro da varanda, uma deusa grega, e perguntou alguma coisa sobre o anjinho que puxava um pano que mal cobria a mulher. Sua mãe poderia ter dito que não era um anjo, era o próprio deus Eros brincado com a deusa Afrodite. Também poderia ter falado dos dois leões cinza que seguravam postes de luz na parte de baixo da escada. Lúcia não disse nada. Ela ainda estava presa à primeira pergunta, que a arrastou para muito longe no passado, quando outras crianças perguntavam a mesma coisa.
— Aí não mora ninguém.
Era isso que ela dizia pro irmão quando ele perguntava a mesma coisa. Sempre que podiam sair do prédio para a rua, passavam pela frente da casa. Nunca tinha ninguém, mas estava sempre tão limpa e arrumada. Não era como outras casas da rua, destruídas pelo tempo. Do lado mesmo ficava uma assim, que mais parecia um depósito. Outras casas viraram museus. João vivia pedindo para entrar na casa, mas ela não deixava. Era mais velha. Sabia ser responsável. E o irmão só tinha essas idéias por causa de André.
— É claro que mora gente aí. Eu já vi. Outro dia entrou um carro. Lá de casa eu vi.
André morava num prédio mais próximo e até podia ter visto mesmo. Lúcia não se rendia.
— Claro que entrou um carro. A casa tem dono, seu bobão, mas ele não mora aí.
Essa era uma conversa de todos os dias, na vinda da escola, na hora de ir comprar pão, na ida à sorveteria da Graça. Ela defendia que a casa era deserta apenas para poder se imaginar dona de tudo. Adorava os arcos que se formavam no alto das colunas da varanda. Adorava a Afrodite e seu Eros. Só não gostava dos leões. Um dia vou mandar tirar esses leões, ou pelos menos mandar pintar de branco. Ela achava que a casa devia ser toda branca e não aquela cor meio rosinha meio bege. A única cor seria daqueles vidros no alto das janelas de cima tão vermelhos que chega doía ver. A casa seria branca como um palácio das Arábias, como o da princesa Jasmim. Ela seria a princesa desse palácio. Desde pequena sonhava assim. Quando conheceu André, com sua pela morena, viu na hora que ele podia ser o príncipe mágico dos seus sonhos, como Simbá ou como Aladim. Mas ele era tão bobo. Era quase um ano mais velho que ela, mas parecia ter a idade de João. Os dois juntos eram intratáveis. Foi André que ensinou João a andar olhando para cima. Os dois seguravam nela e iam andando e olhando para o sol entre as árvores que cobriam a rua. Apostavam pra ver que não chorava da claridade e nem tropeçava na calçada. Meninos. [...]
***
O cego e eu
Adelice Souza

Eu andava distraída, pela alameda das árvores, a caminho de casa, quando vi o cego. Ele tentava atravessar a rua bem em frente à antiga casa onde eu morara. Balbuciava algo quando eu me aproximei no intuito de ajudá-lo a chegar ao outro lado da rua. Falava alto, gesticulava, balançava a bengala no ar, agitada, como se quisesse bater em alguém invisível que estava à sua frente, como se quisesse se defender deste outro. Foi neste momento que percebi que o pobre cego ouvia vozes, como um oráculo às avessas, profetizando destinos ruins, seu caos. Quis dizer-lhe que não havia ninguém ali. Mas não podia: ver a dor do cego na sua luta com o que inexiste, deixou em mim um estado silencioso de perplexidade. Não podia fazer mais nada. Ele conversava com o vazio, gritava com alguém que não existia. Não consegui seguir adiante, era um domingo lindo de sol, eu voltava da praia na minha caminhada matinal e o meu rumo foi obscurecido por aquela presença cega. Porventura haveria uma forma que eu pudesse lhe dizer que não havia ninguém ali a incomodá-lo, mas talvez não estivesse ao seu alcance acreditar em mim, crer no que os meus olhos viam e negar o que ele mesmo ouvia. Eu, também convicta em meus princípios, intuições e sensações, não deixaria me levar pela percepção de um estranho, mesmo que este estranho tivesse olhos e eu não. Ele estava certo, eu estava certa e nenhum dos dois podia fazer nada. Ele queria ver alguém ali, a dor era a dele, o gozo era o dele, a falta preenchida pelas vozes e pelas imagens era dele. Isso não era problema meu, aceitei. [...]

quinta-feira, outubro 04, 2007


[...] O pior de tudo é que não há cheiros e quase se pode sentir Deus. Eu quero andar e não sou movimento. Ágeis são os arbustos, são as nódoas, são as faltas de cheiros, meu corpo não.
Primeiro me dei conta disso – do corpo – que ruía a cada quarto de hora, depois percebi aterrorizado as formigas, rodeando-me como se faz com o alimento. Histérico, nos instantes iniciais ainda achei que reuniria forças onde quer que fosse pra quebrar a inércia, vencer.
Não consegui.
Tua mão veio viva afastando os insetos de mim. Limpou um resto mínimo de sangue, pôs rosas e perfume e me vestiu com um manto de cetim claro.
Ri, grato a ti por tanta generosidade, saiba que estarei sempre, e achei teu pranto extremamente belo caindo em meu rosto morto. Devia ser quente a tua dor e fazia a das outras pessoas indiferente, nula. A milímetros de mim, você arfava em desespero. Não te senti como antes, minha faculdade consistiu no verbo ver, segunda conjugação, transitivo direto. Não lembro mais...
Vi você me guardar no vão e a madeira comer minha liberdade.
Falo como corpo porque corpo preso fui depositado.
Os grãos de areia, as velas, os vermes. O regresso. Não seria exatamente areia, mas barro pútrido, enojante.
Imaginava que o alimento fosse vivo, que cada mastigar sofrido fosse uma alegria de transformação próxima. Mas, não, a dor de ser absorvido é total, é cruel e leva parte dos sentidos. Abomino-me em retalhos. Eu me odeio mordido, rasgado, mastigado, comido. Pernas de barata, pêlos, gosma, meus dentes!
Nenhum cheiro exala, nenhum formigamento. Meu pênis, minhas mãos. Eu não conhecia esses tipos de vermes, só aqueles que levam parte do joelho... lia sobre bichos que dão em água parada, matava muitos ratos quando tinha dez an.....h! Jesus! O cheiro morno da virilha pra sempre perdido... minha unha caindo vagarosa na madeira... minha boca, eu não tenho boca!
É preciso um cigarro, um café.
Um choque elétrico...
Ainda faltam as veias... Ali, falta parte do nariz e um resto de coxa... E essa posta de carne verde, aguada, donde fazia parte? O sangue endurecido. O sangue é um requinte, quem virá me sugar? Eu me contorço, não sei do tempo.
Deve ser longo, mas eu não o sei. Incho. É o inconformismo? Eu não voltaria a comer se tivesse novamente boca, dentes, língua, mas ainda assim... quero meu corpo!
Tapa na cara.
Dentes rolando.
Baba.
Quero meu corpo.
Escuridão.
Por favor, me soltem, me deixem...
Um corte vertical no planeta. Que todos sangrem, que se fodam, que não reste migalhas de gente.
Não é possível... então sou isso?
Corro.
Carne moída.
Odeio. Odeio. Odeio.
Subirei no topo.
Picadinho.
Mal, mal, mal.
Formigas estranhas, estranhas.
Quero tudo no lugar de antes!
Misérias se multiplicam. Demônio, demônio...
Em toda parte: baratas.
São os bichos que mais odeio. Eu que comia vegetais! Eu, que não-andava-descalço-debaixo-do-sol-por-muito-tempo. Eu com minhas rugas.
Eclipsado.
De mal com Deus.
E com Jesus Cristo.
Eu corro.
Que se fodam, desgraçados!
A mancha escura no meu quadril. Minha pele, minhas nádegas, onde o Vic irá deslizar?
Pode ser um câncer, cara.
Eu tinha medo de câncer no pulmão.
Só conseguia dormir depois de ouvir o Morrissey cantar alguma música, qualquer coisa servia, a caixa de som juntinho do meu ouvido, pra mim e somente pra mim.
Meus olhos eram negros... sangue AB, Rh +. Herança do meu pai.
Minha mãe nunca virá.
O banquete.
Água-luz-sabão.
Um dia uma puta me seguiu no Leblon. Olhava pra trás lhe sorrindo, quando por fim entendi: um homem, um homem debaixo da podre fantasia de se fazer exageradamente mulher.
Não me encantavam homens assim.
Mas tudo bem, tudo bem, tudo bem.
Não vou chorar mais.
Que se danem os cílios, que se danem os cabelos.
Posso sorrir um pouco.
Não me apavorem.
Dancem comigo. Um tango, ou dança antiga de ciganos.
Boceta! Boceta!
Por quê?
Eu quero meu corpo!
Macho meu ele foi, homem a quem chamei de amigo.
Não suporto mais esse crânio exposto.
Por favor, um lenço. Lilás.
Um cara me esmurrou no peito, uma vez...
Galeão, Santos Dumont. O barulhos de seres metálicos pelo ar.
Jacarepaguá.
Vozes em alto-falantes.
Passageiros com destino ao inferno, com escala no desespero e na miséria profunda, por favor, dirijam-se ao portão de embarque, e boa viagem.
Arame farpado.
Pois vou dar o troco pra aquele otário.
Irritação no estômago.
Tome a limonada, meu filho...
Não há.
Pode ser um sonho.
Vic, me espere na saída da rua, passo logo que a aula acabar.
Ele estudava língua alemã e amava escritores franceses.
O tempo. O tempo. O tempo.
A chuva podre sobre as cascas das frutas. Sobre as rosas brancas. Sobre os remédios.
Me ofertam flores. Agora vou mesmo chorar... flores pra quê, meu avô?
A primavera me dá saudades, o leite me dá saudades. Oh, Deus, já não tenho nada!
Ossos.
Uma casa bonita, cheia de espaços.
O momento mágico de desgrudar do corpo dele e adormecer.
Sítios. Aeroportos. Calçadas. A corrente fria na cara. Copacabana-princesinha-do-mar. Gozo, esperma, fluídos. Línguas. Espáduas. Coxas. Ânus. Pai-nosso-que-estais-no-céu-santificado-seja-o-vosso-nome. E flores, flores, flores. Vozes que pedem que eu seja recebido ao lado de Deus.
Eu não quero...
Jesus, provavelmente, vai estar lá...
Sentado à direita...
Só de pensar no rosto dele, nos cabelos compridos e negros...
O orgulho católico...
Eu não quero.
Quanto sétimos dias virão?
Vida.
Mangueira-estação-primeira.
Réstias, dores.
Gostava de ouvir samba. Mas não sabia sambar.
De punk, e rock anos 80.
Odiava feijoada.
De trepar a noite inteira.
Te foder de todos os jeitos.
Porque você, eu sabia, era meu.
Fosforescência.
O branco captado por uma gota. Estreito, suando.
O branco dos torpores. Uma chama a me rondar. Quem? O quê?
Um único movimento: a única cor. E as portas abertas por ela, e o vento fechando-as.
Ver é quase uma paz, mas há muito mormaço entre mim e as formas.
Pois eu estou dissolvido. Sem chão, sem tempo.
As nuanças me perseguem.
Não, não façam orações pra mim. Ninguém sabe do que preciso.
Quero é meu corpo. Um beijo e... oh, vão pro inferno com esses pedidos!
[...]
(Henrique, romance, pp. 11-14)

Em Não se vai sozinho ao paraíso, primeiro romance que integra a trilogia místico-erótica de Állex Leilla — cujo centro são as micro-...