domingo, abril 29, 2007

Rarefação (trechos)


As cinzas do cigarro e o seu rosto no espelho se abrem e se fecham num jardim sem palavras, sem promessas, num jardim sem.[1]


Meu amor, contador de histórias,
não te ter é embranquecer o nó.
Não temos mais cidades pra grafitar os muros,
correr dos cachorros, cuspir fumaça pra fora dos pulmões,
anotar placas de ônibus, bares entre dois viadutos,
pernas de prostitutas, virilhas fáceis de homens,
adoção sem fim da noite que alguém um dia disse:
é criança, vamos adentrar.
Jogos elétricos, corpos. Cinemas, bazares.
A cor verde-musgo voltando,
a improvável capacidade de amar de dois elefantes,
o inconcebível encontro: meu rosto e seu rosto roxos
no fundo do mar
.[2]


Movimentos de barcos soltos pela casa,
os cheiros do teu corpo ora vivo, ora morto,
você pintado, óleo sobre a tela,
tua boca dizendo: adoro cerejas.
Refazer o passado é morrer.
Os cadernos estão descendo na chuva,
aqui, arrisco ficar guardada,
por isso me molho lá fora
na nebulosidade azul-branca-borrada,
grade de linhas falhas,
celulose ultrapassada...
Sinto saudades de ti
e é sempre como se desembaçasse
vidros molhados de chuva.
Sempre, sempre, sempre: que palavra linda!,
é tempo de retê-la na boca lentamente,
mastigar, conhecê-la inteira,
até chegar um novo tempo de devolvê-la à língua.
Amanhã, não agora: nesse tempo úmido
que se fecha sobre nossos corpos
e se abre sobre o mundo.
Amanhã, te peço, te falo no escuro,
amanhã aconteceremos,
insanos dentro da chuva.
Há de haver alguma chuva,
penso, quero, decido: amanhã.



Infelizmente, lá vem de novo a vida:
é preciso correr.
Estar de pé na sacada,
dentro dos olhos: os postes, os telhados, os carros, as pessoas.
Meu anjo que não tem corpo
resiste toda madrugada
e quando acordo, já se fez pó outra vez.
Não adianta nunca, eu sei,
é a vida: é preciso correr.
Perscrutar o motivo dos peixes
que incomodam de morte o ar.
Quando retorno às janelas embaçadas do ontem
pouco, quase nada, tenho a dizer:
ah, aquela minha companheira de cabelos ralos e claros,
ou o meu companheiro que preferia machos,
que bom que vocês morreram!
Todo e qualquer riso deles
sempre agudava de ódio esta casa.
Eu queria estar só com Morrissey, mas os ossos visíveis
ou a carne adorável do pescoço dele, dos pés dela,
vinham de lá pra cá cantando coisas em português.
Agora, que alívio, que silêncio.
Vou religiosamente ao cemitério,
e levo-lhes flores da estação que passou.


[1] Zé Luís Franco.
[2] Herbert Vianna.

quarta-feira, abril 25, 2007

FEIRA HYPE, TODO SÁBADO, DAS 13 ÀS 20 HORAS, NO ICBA, CORREDOR DA VITÓRIA

Feira de Santana: Tom Zé
Viajo segunda-feira feira de santana.
Quem quiser mandar recado,
Remeter pacote
Uma carta cativante
Á rua numerada,
O nome maiusculoso
Pra evitar engano
Ou então que o destino
Se destrave longe.
Meticuloso, meu prazer não tem medida
Teje aqui segunda-feira antes da partida
Viajo segunda-feira feira de santana
Trace aqui seu endereço
Sem deixar tropeço
Pode seu destinatário
Ter morrido ou simulado,
Pousado ou avoado
Nas sentenças do seu fado...
Eu vou ficar avexado
Com uma carta sem dono
Le-levando a cuja,
Penando sem ter pousada
Batendo de porta em porta
Como uma alma penada.
Viajo segunda-feira
Feira de santana...
Mas se eu trouxer de volta
O desencontro choroso
Da missão desincumprida
Devolvo seu envelope
Intacto, certo e fechado
Odeio disse-me-disse,
Condeno a bisbilhotice.
Viajo segunda-feira
Feira de santana...
Se se der o sucedido
Me aguarde aqui no piso,
Sete semanas seguidas
A partir do mês em frente
Não sou letra reticente
Palavra de homem racha
Mas não volta diferente.

quarta-feira, abril 11, 2007

O fim do mundo (trechos)

[...]
Você disse que toda a nossa saudade será em tons azuis, agora, 12:40 da manhã, o filme abre o primeiro flashback que minha mente não consegue evitar: estou naquela passagem azul quando você cortou meus cabelos. Lembra? O céu é de nuvens breves e traz as borboletas de setembro. Você encosta os lábios em meu pescoço - eu dizendo que devia estar cheio de fios do cabelo aparado, você negando -, brinca de me morder forte, beija várias vezes minha nuca, encosta o nariz, e fica esperando o resultado. Eu estremecendo, endurecendo pra você.
Memória interditada. Mais do que no cinema. Segundo café do dia. Você está na minha camisa. Acho graça. O delírio me fez avançar um pouco pro início de tudo. Eu tomando café expresso com sanduíche de tomates secos, Sexta-feira treze, praça da alimentação do Aeroclube. Você vem e pede suco de lima. Olhares cruzados. Os meus observaram o teu cabelo liso solto, voando, o violão dentro da capa escura pendurado em tuas costas, a largura dos teus ombros na camiseta preta, a tua boca carnuda, as tuas mãos grossas, o volume do teu pau. Os teus observaram, eu soube depois, o volume do meu pau, o brinco prateado na minha orelha esquerda, o meu sorriso. Comentários irrelevantes sobre a paisagem, o atendimento e a fauna do Aeroclube. O que salva é a visão maravilhosa do mar pra quem freqüentava com a luz do dia, você disse. Raramente venho aqui, eu respondi. Ia ver a primeira sessão de Fogo contra fogo, com Robert de Niro e Al Pacino, meu ator preferido. Vergonha miúda de te conhecer ali: lugar tão medíocre. O que era mesmo que você ia assistir? Nada, você disse, vim visitar a loja de um amigo.
Depois é você no meu carro, eu dirigindo. É você pondo a mão na minha coxa, eu retribuindo. O pára-brisa cheio de chuviscos. Chovia e parava. Parava e chovia. As invenções do tempo, como esquecer? Brincamos de desenhar na calçada do meu prédio um arco-íris. Troncho e com tão poucas cores, só o vermelho, o amarelo e o verde dos lápis de cera que você levava consigo. Nosso mais perfeito arco-íris que a chuva, cúmplice, apagou.
Me pego pensando em morar contigo. FF brusco, parando em cenas de 10, 11 meses depois. Primeiro de tudo, viriam as coisas certas pra cabeça: você me amava mesmo? E eu te amava? Depois, as mais ou menos bestas: dividir o mesmo prato, travesseiro, toalha de banho, pasta de dentes. Amanhecer em nós. Fazer café juntos. Entre outras, entre tantas. E as coisas do espírito: você no meu silêncio. Você respirando comigo. Eu em você. E as coisas do corpo. E as coisas da vida. Assim, por dois anos. Eu quis ter você na minha rotina. Sentindo, no entanto, a ameaça do agora. Que você vai pro Oriente. O martelo da despedida. Você quer voltar pra casa e sua casa é o mundo. A minha é um templo oco que a mente faz e refaz. Realidade-de-ponta-de-agulha. Mesmo sabendo que melhores horas chegarão, quero chorar e vem a secura. Os brios de equilibrista. Vou me ancorar. Sabe-se lá como. Sabe-se lá o que vim fazer aqui. Um dia quebrar os meios, um dia esquecer as ligações. Então aquela casa ficará perdida. Abandonada no encanto das brumas. Eu não precisarei dela. Ela nunca mais será minha.
As flores de sábado. As flores de sábado que seu Sílvio trouxe enfeitam mesa por mesa do café-bar. O desmaio morno do sol nos jarros que mantêm por hoje a vida delas. Que mais poderei nomear neste canto que é puro você? Terceiro café do dia: Bruce Springsteen reacende o mundo ao meu redor: My lover man. Bruce Springsteen arrasta o dia: Sad eyes. Bruce Springsteen leva o dia embora: Wages of sin.
Estou farto. Pedra voltarei, ou água. Pingo de chuva mortalmente findo. Este é o nosso fim. No vidro empoeirado de alguma galeria. Estaremos congelados e mortos. No vidro. Tentei ser invencível, mas agora fecho os olhos: desisto. Vou.
[...]

sábado, abril 07, 2007

Uma vez vertigem, sempre problema.
Evitemos.
Visualizamos o céu de manhã bem cedo e despreocupamo-nos: tudo bem, vai dar tudo certo. Não por merecimento ou fé, mas por que, repense, meu bem: há outro jeito de sobreviver?
***
A melancolia. Sim.
O pessimismo. Sim.
A vontade de morrer. Sim.
E se morre?
Não.
E quando morre?
Não adianta: nada.
****
A linha é fina mas não tem tensão que a faça interativa: lá é lá, e cá é cá.
Sem contato, sem palavras.
***
Estás preenchendo o branco apenas por preencher?
É verdade.
Qual cabimento nisto?
Pensei "lilás".
Nada veio.
"Automatic for the people", pensei.
Veio: uma vertigem.
É sempre problema.
Evitemos.

quarta-feira, abril 04, 2007



























mas não sei o que te entreguei ontem, mesmo que me tortures, não me lembrarei, há tantas coisas erguidas lá fora, coisas feias e sujas, coisas mofadas, esquisitas, diferentes de roupas branquinhas cheirando à lavanda no varal.

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não adianta nada este olho, este lamento, este grito teu ressoando. eis o caminho sem volta, o caminho do pesadelo: você está congelado na infância, naquele tempo em que, feito o poema do Álvaro de Campos, todos te adoravam e contigo comemoravam o dia dos teus anos.

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então vou voltando de mansinho, me aninhando em teus braços, fazendo festa com os pêlos do peito que ora embranquecem. levaremos um tempo inútil, um tempo longo para entendermos que-foi-de-repente que nos jogou noutro canto, que-foi-de-repente que fez este corte estranho.

Em Não se vai sozinho ao paraíso, primeiro romance que integra a trilogia místico-erótica de Állex Leilla — cujo centro são as micro-...