quarta-feira, fevereiro 28, 2007

Desconexões

Então saio da cidade como quem quer levar escondido de si mesmo toda a cidade por dentro.
Compactada.
Zipada.
Miudinha.
Abrir minha cidade numa praça florida, parque gigante ou mar sem fim, nas outras cidades onde os pés me levarem. E poder, ao abri-la, fundindo todas as faltas que ela há anos me cravou, ampliar minha pobre minúscula cidade até o infinito. Até romper os limites de barro e feiúra com que ela me fez.


Ouvindo Stones pelo caminho.
Porque um cara bem nascido só pode querer duas coisas da vida: tocar guitarra e amar.
Você foi quem me disse tal asneira.
Mas como amar sentindo que o pulsar mais verdadeiro é a consciência viva de que o podre está infiltrado em tudo, e todos disfarçam-no com perfumes, gestos gentis.
Minha mãe-vidro-eterno-de-alfazema: “pegou o casaco, meu filho?” “Ligue assim que chegar, não se esqueça”.
O motorista do ônibus, lavanda-barata-ou-qualquer-outro-perfume-comum-de-criança: “pode descansar, eu te acordo quando chegar no ponto”.
Sarinha, seca-feito-o-cheiro-de-orquídea-que-jamais-absorvemos-mas-está-tão-mentiroso-em-não-sei-quantos-incensos: “que mãos lindas você tem”.


Roteiro de dias fragmentados. Sem rumo, sem guia.
Nos deixe. Por favor. Nos esqueça.
Não coloque Tua mão pesada sobre nossas cabeças, não invoque Tua maldita alma a nos trazer de volta.
Afaste-se, afaste-se, por favor.
Guarde-nos, suicidas que somos, da fome de viver neste cárcere, o planeta-purgação. O planeta que merece a bomba atômica, há tempos, há séculos, caduco, tosco, inútil. Guarde os que não aceitam o sofrimento como parte de um aprendizado a que se chama, ridiculamente, “existência”, “vida”. Guarde aqueles predestinados a romper mil vezes a escuridão feito estrelas ou anjos perdidos. Feito uma explosão onde os pedaços desagregados jamais voltarão a formar a Tua sagrada unidade: corpo, mente, alma, espírito.
Seja um bom jogador e aceite perder o domínio sobre os que têm coragem de Te ignorar, Te desdenhar, Te esquecer. Os que querem o nada, o vazio, a descriação. O zero absoluto, a descravidão. Guarde de Tua sede de vivência os Hendrixs, os Morrissons, as Joplins, os Drakes, as Anas C., os Cobains, os Deleuzes, as Sylvias, os Ulisses, os Custis, os Sócrates. Salve-os de Ti mesmo.

terça-feira, fevereiro 06, 2007

"Sobre a minha pele navegam barcos" (José Saramago)


Não quero a negra desnuda.
Não quero o baú do morto.
Eu quero o mapa das nuvens
E um barco bem vagaroso.
Ai esquinas esquecidas...
Ai lampiões de fins de linha...
Quem me abana das antigas
Janelas de guilhotina?
Que eu vou passando e passando,
Como em busca de outros ares...
Sempre de barco passando,
Cantando os meus quintanares...
No mesmo instante olvidando
Tudo o de que te lembrares.
(Mário Quintana: Canção de barco e olvido)
É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.
É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros
e a luzimpura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.
(Eugénio de Andrade)

Em Não se vai sozinho ao paraíso, primeiro romance que integra a trilogia místico-erótica de Állex Leilla — cujo centro são as micro-...