quinta-feira, outubro 04, 2007


[...] O pior de tudo é que não há cheiros e quase se pode sentir Deus. Eu quero andar e não sou movimento. Ágeis são os arbustos, são as nódoas, são as faltas de cheiros, meu corpo não.
Primeiro me dei conta disso – do corpo – que ruía a cada quarto de hora, depois percebi aterrorizado as formigas, rodeando-me como se faz com o alimento. Histérico, nos instantes iniciais ainda achei que reuniria forças onde quer que fosse pra quebrar a inércia, vencer.
Não consegui.
Tua mão veio viva afastando os insetos de mim. Limpou um resto mínimo de sangue, pôs rosas e perfume e me vestiu com um manto de cetim claro.
Ri, grato a ti por tanta generosidade, saiba que estarei sempre, e achei teu pranto extremamente belo caindo em meu rosto morto. Devia ser quente a tua dor e fazia a das outras pessoas indiferente, nula. A milímetros de mim, você arfava em desespero. Não te senti como antes, minha faculdade consistiu no verbo ver, segunda conjugação, transitivo direto. Não lembro mais...
Vi você me guardar no vão e a madeira comer minha liberdade.
Falo como corpo porque corpo preso fui depositado.
Os grãos de areia, as velas, os vermes. O regresso. Não seria exatamente areia, mas barro pútrido, enojante.
Imaginava que o alimento fosse vivo, que cada mastigar sofrido fosse uma alegria de transformação próxima. Mas, não, a dor de ser absorvido é total, é cruel e leva parte dos sentidos. Abomino-me em retalhos. Eu me odeio mordido, rasgado, mastigado, comido. Pernas de barata, pêlos, gosma, meus dentes!
Nenhum cheiro exala, nenhum formigamento. Meu pênis, minhas mãos. Eu não conhecia esses tipos de vermes, só aqueles que levam parte do joelho... lia sobre bichos que dão em água parada, matava muitos ratos quando tinha dez an.....h! Jesus! O cheiro morno da virilha pra sempre perdido... minha unha caindo vagarosa na madeira... minha boca, eu não tenho boca!
É preciso um cigarro, um café.
Um choque elétrico...
Ainda faltam as veias... Ali, falta parte do nariz e um resto de coxa... E essa posta de carne verde, aguada, donde fazia parte? O sangue endurecido. O sangue é um requinte, quem virá me sugar? Eu me contorço, não sei do tempo.
Deve ser longo, mas eu não o sei. Incho. É o inconformismo? Eu não voltaria a comer se tivesse novamente boca, dentes, língua, mas ainda assim... quero meu corpo!
Tapa na cara.
Dentes rolando.
Baba.
Quero meu corpo.
Escuridão.
Por favor, me soltem, me deixem...
Um corte vertical no planeta. Que todos sangrem, que se fodam, que não reste migalhas de gente.
Não é possível... então sou isso?
Corro.
Carne moída.
Odeio. Odeio. Odeio.
Subirei no topo.
Picadinho.
Mal, mal, mal.
Formigas estranhas, estranhas.
Quero tudo no lugar de antes!
Misérias se multiplicam. Demônio, demônio...
Em toda parte: baratas.
São os bichos que mais odeio. Eu que comia vegetais! Eu, que não-andava-descalço-debaixo-do-sol-por-muito-tempo. Eu com minhas rugas.
Eclipsado.
De mal com Deus.
E com Jesus Cristo.
Eu corro.
Que se fodam, desgraçados!
A mancha escura no meu quadril. Minha pele, minhas nádegas, onde o Vic irá deslizar?
Pode ser um câncer, cara.
Eu tinha medo de câncer no pulmão.
Só conseguia dormir depois de ouvir o Morrissey cantar alguma música, qualquer coisa servia, a caixa de som juntinho do meu ouvido, pra mim e somente pra mim.
Meus olhos eram negros... sangue AB, Rh +. Herança do meu pai.
Minha mãe nunca virá.
O banquete.
Água-luz-sabão.
Um dia uma puta me seguiu no Leblon. Olhava pra trás lhe sorrindo, quando por fim entendi: um homem, um homem debaixo da podre fantasia de se fazer exageradamente mulher.
Não me encantavam homens assim.
Mas tudo bem, tudo bem, tudo bem.
Não vou chorar mais.
Que se danem os cílios, que se danem os cabelos.
Posso sorrir um pouco.
Não me apavorem.
Dancem comigo. Um tango, ou dança antiga de ciganos.
Boceta! Boceta!
Por quê?
Eu quero meu corpo!
Macho meu ele foi, homem a quem chamei de amigo.
Não suporto mais esse crânio exposto.
Por favor, um lenço. Lilás.
Um cara me esmurrou no peito, uma vez...
Galeão, Santos Dumont. O barulhos de seres metálicos pelo ar.
Jacarepaguá.
Vozes em alto-falantes.
Passageiros com destino ao inferno, com escala no desespero e na miséria profunda, por favor, dirijam-se ao portão de embarque, e boa viagem.
Arame farpado.
Pois vou dar o troco pra aquele otário.
Irritação no estômago.
Tome a limonada, meu filho...
Não há.
Pode ser um sonho.
Vic, me espere na saída da rua, passo logo que a aula acabar.
Ele estudava língua alemã e amava escritores franceses.
O tempo. O tempo. O tempo.
A chuva podre sobre as cascas das frutas. Sobre as rosas brancas. Sobre os remédios.
Me ofertam flores. Agora vou mesmo chorar... flores pra quê, meu avô?
A primavera me dá saudades, o leite me dá saudades. Oh, Deus, já não tenho nada!
Ossos.
Uma casa bonita, cheia de espaços.
O momento mágico de desgrudar do corpo dele e adormecer.
Sítios. Aeroportos. Calçadas. A corrente fria na cara. Copacabana-princesinha-do-mar. Gozo, esperma, fluídos. Línguas. Espáduas. Coxas. Ânus. Pai-nosso-que-estais-no-céu-santificado-seja-o-vosso-nome. E flores, flores, flores. Vozes que pedem que eu seja recebido ao lado de Deus.
Eu não quero...
Jesus, provavelmente, vai estar lá...
Sentado à direita...
Só de pensar no rosto dele, nos cabelos compridos e negros...
O orgulho católico...
Eu não quero.
Quanto sétimos dias virão?
Vida.
Mangueira-estação-primeira.
Réstias, dores.
Gostava de ouvir samba. Mas não sabia sambar.
De punk, e rock anos 80.
Odiava feijoada.
De trepar a noite inteira.
Te foder de todos os jeitos.
Porque você, eu sabia, era meu.
Fosforescência.
O branco captado por uma gota. Estreito, suando.
O branco dos torpores. Uma chama a me rondar. Quem? O quê?
Um único movimento: a única cor. E as portas abertas por ela, e o vento fechando-as.
Ver é quase uma paz, mas há muito mormaço entre mim e as formas.
Pois eu estou dissolvido. Sem chão, sem tempo.
As nuanças me perseguem.
Não, não façam orações pra mim. Ninguém sabe do que preciso.
Quero é meu corpo. Um beijo e... oh, vão pro inferno com esses pedidos!
[...]
(Henrique, romance, pp. 11-14)

5 comentários:

  1. Anônimo10:03 PM

    Minha vida, o blog ficou lindo! Um beijo.

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  2. Anônimo1:34 PM

    Lindo o texto.. passagem mto bem escolhida..
    Beijos.

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Anônimo11:22 AM

    Foi com enorme prazer que visitei o cômodo de sua outra morada. Parabéns!!!

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  5. Anônimo3:24 PM

    Olá, Li seu livro Henrique e fiquei chapado com o ar lírico, mas ao mesmo tempo tão cortante que perpassa pela obra. Qdo sai um novo romance seu?

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