sexta-feira, dezembro 30, 2005

Voltar. Mar de sempre. Depois de todo o enfado, tanta coisa inútil, anotar, rasgar, jogar fora da memória. Qualquer coisa. Anything: Animals. Back to the old house: Morrissey. A chuva, guarda-chuva: Ana Cesar. O prata do esmalte nas unhas. Não diga nada: Drummond. Na noite não há cérebro, só redes. Cortinas de seda vigiam o tempo. Somos tudo o que pudemos e o que não.

Feliz 2006.

terça-feira, dezembro 27, 2005

A paisagem da minha janela

Atualmente, o que vejo são menos de três pedacinhos de mar. Lá longe, no Rio Vermelho. Que se fundem ao céu e ficam indivisíveis quando o céu está muito azulzíssimo, como neste dia da foto. Prédios, vários, é claro, moro no décimo quanto andar. Olhando pra baixo, se vê também uma invasão, no fim de linha do Garcia. Invasão é aquilo que os cariocas chamam de favela. Ou quase. Moro, atualmente, no Canela, bairro central de Salvador. Mas não há barulhos. Graças a Deus. É tudo quieto na minha janela.
Cortázar dizia que existiam horas que era preciso atirar tudo pela janela e nós também com elas. A primeira vez que li achei que haviam passado mal do espanhol pra o português. Pensei: tá ruim. Mas não. Está certo assim mesmo, hoje vejo, e quando mais se aproxima o fim do ano, mais certeza tenho: é preciso jogarmos tudo pela janela e nós juntos com elas. Principalmente quando vier aquela vontade de fazer balanço tão própria do fim do ano. E ainda tem coisa pior que o balanço: as listas. Os melhores filmes, os melhores discos, as melhores frases, as melhores cenas, os melhores livros do ano. É uma tentação. E os piores também. Mas segure a onda. Não faça a menos que tenha certeza que está fazendo algo bacana. A maioria das listas e dos balanços são tão pessoais que não interessam nem ao pudle do vizinho. Sim, nem àquele cachorro-branquinho-alegrinho-de-vida-tão-fácil que se interessa por qualquer merdinha que passa por ele, inclusive você.
Tá combinado?
Tá.
Mas o melhor filme do ano foi "Brilho eterno de uma mente sem lembrança". E a música que ficou na minha cabeça foi "Dias", de Dado Villa-Lobos e Paula Toller. E o melhor livro... não, não. Juro que não farei isso. OK.

sexta-feira, dezembro 16, 2005

Mais poemas

M.o.r.t.e.
I

O amor que não tive tranca as asas pela casa,
asas mortas na sede de vôos que jamais virão.
Chamava-se água-da-vida
- não sei se você se interessa, lembra, sabe -,
chamava-se água-da-vida a cachaça que sufocou o Fernando.
Perceba que longe, tão longe,
alguém se desespera,
rasgando a noite
com pedidos de socorro.
Não se aflija: não sou eu, não é ninguém.
O dia foi quieto, dentro e fora da pele,
o suor dos amores passados extirpado
na espuma do sabão.
Idade morta, mundo parado,
quase não sinto a hemorragia cristalina dessa droga
avançando pela garganta
peito, umbigo, ventre,
disfarçada com sal-&-limão,
arde tão plena,
devastando-me o corpo
que o amor não tocará.
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Lembrete ao Ivã Coelho que me chama de "sem coragem" pra publicar meus poemas. Primeiro: não é uma questão de coragem, publicar é sorte pura, escapa-nos, porque precisa da vontade alheia (editoras) mais do que da nossa; segundo: está no forno da Bahia, patrocínio do Banco Capital, uma antologia com 07 poetas, prevista para o início de 2006, eu farei parte dela com 05 poeminhas. Até lá.

quinta-feira, dezembro 08, 2005

Violinos

Queria que você me enxergasse agora, envidraçando Salvador.

Pondo as palavras em sacos plásticos,
coisinhas murchas, fios de cabelo, outonos fechados,
aglutinados, sofrendo, orando.

Luzes entrando assim quando não é tarde nem primavera.

A inocência nos ladrilhos,
entre sete portas: você sóbrio e soberano
enquanto dança em mim a mesma dor.

Cidades bailarinas, de noite: bailarinas,
mas nada hoje é muito sábio.

Solidão é tua palavra chave?
I dunno... mas os violinos partem rasgando, rasgando.

O balé da cidade, os destroços que ela pare
e me manda na madrugada, juntos ao ar.
Mesmo colocando em sacos plásticos, mesmo envidraçado,
muito pouco de nós adianta.

Erguendo pernas e braços, acho que te enlaço,
mas não sei se passas de imagem,
coisa linda que se vê na vidraça
e se se toca e ouve é feito lágrima
de violinos que retornam machucando
e ontem tão distantes pouco impressionavam.

segunda-feira, dezembro 05, 2005

Para Renato Pedrekal Jr.

Cores, amores, amores, cores. Suaves. Densas. Densos. No porão. Há uma fresta. Por ela, a Vida. A Vida nem sempre chega aos bocados. 'Inda mais quando se está num porão.

Hoje aprendi a escrever de forma correta o nome de quem inventou definitivamente o vermelho, o branco e o azul: K-r-y-s-t-o-f-f K-y-e-s-l-o-v-s-k-y.

Engraçado, eu pensei que fosse com "i" e não "y".

Repare como isso é importante: praticamente ele inventou duas das três cores primárias que existem no planeta.

Leva-se anos pra entender isso. É verdade, eu sei. A Vida nem sempre chega aos bocados. Os discos já não giram, corroídos pelo tempo. Para ouví-los, acendo na tomada a memória.

Você já ouviu o novo disco do Neil Young?
Não. Mas deve estar bom de doer.

De tomada acesa, hoje, sem crise, reparo que não chove nem tem arco-íris.
Te digo com carinho: não é apenas uma rima, mas a seqüência lógica de um pensar viciado. Uma fresta é o suficiente. Crianças adoram frestas.

Exato.

E como elas, eu também adoraria que não existissem mais os caminhos tortos e a distância. E que pudéssemos estar tranqüilos, neste instante, olhando os brinquedos velhos, muitos até quebrados, que abarrotam o porão.

Mas não. Não. E não.

Tive, tivemos que abandonar o porão em favor das janelas. Uma paisagem mínima de janela escancarada vale mais que milhões de frestas e portas entreabertas. Eu sei, você sabe.

O silêncio é negro. Mas não devora mais o azul denso de Juliete Binoche. Ela permanece. Azulzíssima. Assim como Irene Jacob: ora de sangue, ora castanho-marrom-envelhecido.

Pra ficarmos mais chiques, pintei o porão de verde-sépia. Nossos amores legiomaníacos. Nossos amores drakianos. Nossos amores coloridos.

É uma paisagem comum, pra você usar no dia-a-dia. Ou de noite, na hora exata da separação. Nos sonhos. É o suficiente. O cristal da chama aquece meus sonhos. A renovação jamais se faz sem crise.

Tenha uma boa semana. Cheia de cores, amores. Amores, cores. Suaves. Densas. Densos.

sábado, dezembro 03, 2005

"Henrique"


Desgraçado!, volte logo de Munique.
Por favor...
Eu tinha um tesão miserável por ele, quando gozávamos sempre jogava isso em seu ouvido. Louco, louco. Quase sem voz.
Escrevi-lhe. Dei muitas notícias. Que teve eleição pra governador no Rio – teve em todo território verde-amarelo-anil, mas só interessava falar dos nossos próprios narizes –, por protesto, não fui votar e estava me lixando pras multas folclóricas, grande merda é um país que obriga as pessoas a votarem, né, Vic? Falei sobre a duplicação das estradas: só engodo do governo federal, nunca se resolvia muita coisa e os acidentes se multiplicavam; sobre nossos amigos também. Que o Eros me visitava constantemente, que Ronaldo casou com o Décio, fizeram uma festa com cerimônia e tudo. Teve um bolo imenso, cheio de nozes e chocolate em pedaços. Superbacana. Você ia gostar de ter ido, bebemos até de manhã. O Ronaldo de branco e lilás. O Décio de amarelo clarinho. O Tavinho estava também, numa cadeira de rodas, todo deprimido... Quando me viu foi soltando veneno, dizendo que eu não me enganara, ele realmente estava com o vírus. Que vírus? Eu disse alguma coisa sobre ele? Não dei resposta logo porque você bem sabe o meu saquinho pra fofoquinhas. Mas nos falamos depois, num canto, eu sabia perfeitamente que ele estava com AIDS, e daí? Que diabo de fofoca foram contar pra ele? Fofoca nenhuma, ele me disse e ficou me olhando com aqueles olhos arroxeados, talvez magoados, não sei. Mas passou logo, no final da festa estávamos rindo e dançando, isto é, tentamos dançar juntos, eu de pé, ele na cadeira de rodas, porque está se sentindo muito cansado e inseguro, disse que cai de vez em quando ao tentar andar. Tão triste vê-lo assim, Vic, me deu um nó por dentro... me lembro que na infância você jogava futebol com ele... eram os gays-machos do time... Pedro foi pra Bolívia com Saulo, fazer que porra não sei, Hugo foi morar em Búzios com Jordano, tá todo mundo casando, sendo feliz, ou pelo menos querendo, tentando, e você? Por que não volta logo? Decidi sair da casa do meu avô mesmo sem você estar aqui, aquele casarão parecia esconder minha mãe em cada porta e cada lustre. De repente, deu de aparecer tanta formiga lá, cara! Tivemos que chamar a detetização...! Meu avô foi pra Portugal, passar uns tempos com suas irmãs insuportáveis, não sei porque Deus me deu tanta tia... Você sabe que não sei diferenciar uma da outra? São tão iguais, com os vestidos azuis de listras brancas, os rostos rosados, as bolsinhas douradas, os sapatos pretos, os movimentos cansados, as mesmas frases, as mesmas palavras – Vic, você acredita que elas ainda falam tu e vós? Pois falam, com verbo flexionado e tudo! São tão abusadas essas senhoras, não consigo chamá-las de velhinhas, acho que nariz empinado e olhar medindo as pessoas de cima a baixo não combinam muito com esse nome: velhinha. É tão carinhoso! Gostaria que fôssemos velhinhos pros nossos sobrinhos e não senhores ou tios... embora eu não tenha sobrinhos... serei dos seus, né? Sim, o meu amigo Eros e sua irmã não já têm dois filhos? Então...
Você vai morar comigo quando voltar, cara?
Sim ou não? Responda logo.
Já fui ver uns apartamentos hoje. Vários apartamentos que a imobiliária do meu avô alugava, foram desocupados ao mesmo tempo... Mas não sei se você iria gostar desses... Não diga que pro lugar de onde você vem qualquer coisa serve. Detesto quando você cisma de falar assim, perde-se completamente a noção de escolha. E repare que nós somos dos poucos que ainda podem escolher, entende?
Me masturbo sempre, pensando em você.
Às vezes, encho a cara, como um cão vadio rodando os bares altas madrugadas...
É tão miserável não te ver... O Cazuza acaba de morrer e você não está aqui pra conversar comigo... É uma desgraça, sabia?
Hoje tem Legião Urbana no Jockey Club Arena. Vou pensar que ainda estás do meu lado quando tocarem Daniel na Cova dos Leões...
O Vic escreveu pro Eros, a carta chegara no mesmo dia em que terminei a minha. Falou de um grupo de pesquisadores que ele conheceu, dos estudos que vinha realizando juntos, do maravilhoso vinho tinto que tomara, de uma peça de teatro sobre a vida no campo, de sua preocupação por saber que eu andava usando cocaína. Tudo coisa atrasada, de pelo menos dois meses... Pedia pro Eros confirmar se eu usava mesmo cocaína. Quem contou pra ele? Eros? Achei engraçado ele perguntar se eu estava viciado, quantas vezes usava por dia, semana, mês. E que pena, ele havia escrito já no final da carta, soubera que o Cazuza estava muito mal, ele sentia tanto! No final da carta, mandava Eros tomar conta de mim. Havia um parágrafo que dizia:
Você deve saber que não sou nada romântico, mas Henrique é presença constante em meu pensamento, ora é uma vontade, ora é a própria projeção. Utopia. Realidade. Eu o vejo triste, velho, de tantas maneiras que em verdade nunca esteve. Presente. Muito presente. Sonho com um amanhã vitorioso me tomando nos braços, como por Henrique tantas vezes fui tomado. Adormeço feliz pra acordar inseguro. O que será que Henrique faz a essa hora no Brasil? Já amanheceu por lá, ainda é noite? Será que Henrique tem insônia? Minha vontade é gigante, mórbida até. Minha vontade se chama Henrique. Somente Henrique.
Fiquei bobo.
Úmido.
Latejando.
Pedi pra copiar aquele trecho da carta. O Eros disse que eu podia levar.
– Inteira?
– Claro, a carta foi escrita pra você mesmo!
Não esperava.
Não do Vic.
Nessa época eu namorava um rapaz de Botafogo. Quer dizer, não namorava exatamente, mas nos víamos vez em quando, íamos ao cinema e trepávamos. Ele tinha um sotaque baiano. Porque a mãe era baiana, ou ele nasceu na Bahia e veio adolescente pro Rio, qualquer coisa desse tipo, não lembro bem. Só sei que, porra, naquele dia, marquei com ele e na última hora desisti. Saí sozinho naquela noite. Não queria saber, não queria. A carta tinindo em meus ouvidos. Um frio nos calcanhares. E dentro. Creio que no fígado, no saco, no coração.
Fiquei imaginando o que o Vic diria ao me ver tão abandonado, pequeno, febril.
Encontrei um ex-colega de faculdade dele, carregava uma porção de livros, panfletos, apostilas.
A linguagem da carta me pôs em erupção. Gostaria de descobrir tantas cidades com ele e estava ali no Rio conversando com seu ex-colega sobre cigarros e literatura. Na penumbra das árvores cariocas. O cara gostava como eu de Marlboro e Caio Fernando Abreu, cheirava fortemente a jasmim e se dizia louco pra sair do Brasil.
Consegui lembrar vagamente de um encontro com ele certa vez no Leblon. Alguém, talvez o Vic, talvez o Tavinho, talvez o Eros, chamando-o de gavião, ou de tucano ou de pardal. Não, não seria de urubu? Agora me chamam de Paris, ele disse, porque só penso em ir pra lá. Os olhos dele estavam alongados pelo lápis preto, uma vez vi um lápis preto na bolsa da minha mãe...
Falei pra Paris que íamos os dois ao show, impedindo-o de continuar a falar de dinheiro e cigarro, dinheiro e cigarro, e uma ou outra frase pescada em Clarice Lispector.
Tinha até lua cheia.
Paris ficou muito contente quando eu disse que você estava longe, meu amigo. Deu de me beijar no pescoço.
Comprei ingressos pelo triplo do preço e entramos já no finalzinho de Há Tempos, começo de Daniel... Vic, o Renato Russo estava usando bigode, você sabia? E dedicou o show ao Cazuza, que morreu ontem – sinto muito lhe dizer assim: Cazuza morreu ontem. Penso no quanto nós gostávamos das músicas dele, mas tudo acaba pequeno diante do fim... Acharia uma dádiva se você estivesse comigo no show da Legião. Acredite, eles tocaram até Andrea Doria, a canção que você disse que nunca tocavam ao vivo... (Claro que tocam, Vic!) Eu nos braços de tantas entidades alucinógenas. O cheiro de jasmim do seu amigo evaporando, sumindo entre o amontoado de axilas que se erguiam ao nosso redor. E as luzes, você não acreditaria na chuva de fogos de artifício que houve no final. Até o axioma do dia seguinte me mostrar o vão do quarto, da cama de Paris. O corpo dele cheio de mordidas minhas – pelo menos ele jurava que eram minhas. Bombas estourando em minha cabeça. E as formigas passando no teto do quarto. Brincando de disco voador.


Avitaminose.
Soro.
Densidade.
Fotografias.
Congestão.
Mau humor.
Suicídio?
Não.
Sim.
Que palhaçada!
Oh, não, isso é sério.
A inexistência de Deus.
Vic.
E Deus.
E Vic.
A páscoa.
O sacrifício, o sacrifício.
Eu, Deus e Morrissey: Everyday is like Sunday. Everyday is silent and grey.
E sua ausência, cara, e sua ausência!
Maria Madalena, a mulher de Cristo.
Maria, virgem mãe de Deus.
José, o carpinteiro.
E Deus perturbando a paz dos homens, enchendo o saco de toda gente que não acredita nele. Acho que encherá sempre desde que se tenha um nervo aberto lá na Grécia antiga... Eu venho da Grécia, mas venho muito mais de Roma... E de um curto intervalo na Alexandria. O mundo que não vingou.
Água sanitária.
O vício nas veias.
O vírus nas ruas.
E Jesus querendo se impor, Jesus com sua história de sangue e perdão.
E José, coitadinho, José tão bom padrasto! Sempre tive tanta pena de José, meu Deus...!, quando criança contei pro Vic, mas ele não se importou.
Vic, Vic! Comecei a ter medo da AIDS. Enumerar os rapazes que comi. Sonhei coisas abomináveis com meu amigo Eros, que nem gay era. Morte e putrificação. Jornais me espetando os cantos da boca, das unhas. Você nunca voltava da Alemanha, me irritava profundamente em ver o tempo passar sem te ter.
Tudo latejando.
Minha neurose era só um ângulo, aquele em que nos colocamos uma vez no fundo do carro quando visitávamos São Paulo. Pra nos masturbar. Minha neurose era só esse resto de carícia próximo do MASP.
Talvez, se procurasse outro amor...
Mas...
Não me interessa.
Em minha cabeça não caberia.


Objetivei seu retorno:
Se você tem coração, volte logo – eu preciso nos ver foder mais uma vez.
O Eros disse que não iam aceitar um telegrama assim. Ainda mais sendo pro exterior.
Aquietei-me. Escrevi apenas:
"Tenho tido vôos em ângulos alternados, arredondados e trêmulos, talvez oriundos de você."

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Romance: "Henrique", editora Domínio Públicco, Salvador, 2001. À venda na Livraria LDM (Rua Direita da Piedade, s/n, Piedade, Salvador, Bahia, em frente ao Banco do Brasil).

Em Não se vai sozinho ao paraíso, primeiro romance que integra a trilogia místico-erótica de Állex Leilla — cujo centro são as micro-...