sábado, novembro 19, 2005

Revista AgudaQuaseGrave, Maceió/AL, 1991

Espelhos

A Arla Coqueiro e Gil Maciel,
meus primeiros editores


Não sei que tipo de sol havia quando vim ao mundo; não sei se na hora do parto usaram espelhos; sei que não há medo ou dor que não me leve a horas a fio na frente de retrovisores, pequenos espelhos de bolso, enorme vidraças, lugares em que me concentro, dispo a máscara, o feitiço, toda a encenação e, perdidamente, me olho, me odeio, me admiro, sem narcisismo, ou eu sou narciso?

Que espécie de medo enveredou em minhas sílabas tônicas? Quero fugir pro mundo sem destino das pessoas nada aflitas, nada sorridentes, nunca melancólicas, e contudo diferentes e alucinadas, a alucinação perdida do amor cruel que desumaniza toda a criação e cada tentativa de ser feliz.

Ser gente em abraços.
Ser gente e braços.
Ser gente e aço.
Eu te quero gente, letra, perfume, mormaço.
Odeio o seu cachorro maldito, esse ser mesquinho que você amarra do teu lado direito e atrapalha toda a nossa história. Você é um ser canino. Vive com fantasmas caninos. Sua idéia fixa de cão não me anestesia, mas me faz, estática, te esperar.

Não sei que horas são. Não se pode confiar aos relógios a missão de saber dignificar e desprezar instantes febris, instantes de morte e adulteração.

Você me adultera. Essa tua idéia demente de me perseguir avança limites. Você vai me estuprar na próxima esquina, eu sei e por isso grito, mas não tenho razão pra temer. Temer o teu contato? Não, não me amedronto com contatos. O que me amedronta então?

Meu primeiro beijo gay...
Um beijo homossexual...
Um gato homossexual...
- Vamos, flor, ao paraíso?

Você não vai me deter. Sua violência é fraca. Pulsos fracos, socos vagos, pontapés de mentira, não sinto dor, é um ato flácido. Uma bolha, uma bola, um balão.

Eu vim ao mundo em novembro. Agora creio que chovia. Há dores quando chove. Há um céu desaguando: você não vem, perdi tua coleira. Um vira-lata sumindo no mundo.

E eu na praça.
Eu no cio.
Corro pro espelho e... “Não era nada”. Não era eu.
O que é que você faz aí cheio de imagens?
Te vejo passar entre elas, pareces facho de luz.
Eram duas imagens e uma pessoa.
Ou não.
Era eu sozinha e a mentira.
Era eu?

Te espero no cio, na praça.

Já não tenho certeza, só febre.

Me lembro da gente no útero, sofrendo pra não nascer. Um de nós sumindo no aborto, eu era teu sangue, tua linfa, teu cordão umbilical.

Pra que você foi amadurecer? Eu te comia verde antes do vento te adivinhar no pé. Era uma árvore gigante, folhas amarelas que enfeitavam o céu.

Quero voltar do mundo diferente. Não era essa a saída, não quero alienar o sentimento, o amor é a comédia, não quero tragédia, não quero, não quero...

Por favor, vire qualquer objeto que eu possa carregar na mão. Um chaveiro lhe cai bem. Ou então um inseto, um grilo no meu cabelo, um mosquito no espaço dos seios, ou pêlos, somente pêlos, que eu não possa arrancar.

Absurdo! Leviano coração. Prostitui-se, perde-se, por pares de olhos, faíscas de olhos, vulcões de olhos: fascinação vadia.

É o fim.
Partiu-se.
Muitos, muitos retrovisores.
Tantos, diversos caquinhos de nós.

A noite foi-se.
De noite eu era um anjo.
Acordo, corro pra frente do espelho.
- Eu não sou narcisista.

Vi flores na praça, nunca cachorros.
Você pôs meu nome em linhas traçadas, sempre o mesmo erro dos “ss” que me reduz.
Você foi embora. Um anjo no inferno.

Adolescentemente: amanhã tudo passa.
Estupidamente: a gente amadurece.

Vou querer ficar sendo folha, a última, sempre a ultima. Não vou cair, não vou mudar de cor. Amadureça você, o mundo inteiro.
O azul do céu é inexperiente.
A fecundação do sol só é sábia porque chega cedo.
Só você quer cabelos brancos.
Eu quero ser verde, morrer bem cedo, não conhecer cadeira de balanço, cinderelas, netos, meditações.

Quero queimar os pés.
Meu amor é gay.
O planeta é gay.
Todos estão se colocando de quatro diante dos meus olhos.

Somos desgraçadamente amigos.
Terrivelmente ligados.
Você me olha e a imagem morre. E mesmo refletindo todo o tempo, lá no pedaço de vidro esquisito não há encontros.

Vou invadir sua morada, sua cova, suas cinzas, sua assombração.
Fechou os olhos pra quê?
Vou abri-los devagar... Não chore.
Não chore não...
Nublado o céu, tudo de uma só cor.
Mas não chore: eu faço estrelas de papel crepom.
Te empresto uma borracha eficaz, de duas cores. Não precisa ficar triste: é só apagar.

A metamorfose! Enfim um pássaro!
Não me lembro que eras cachorro.
Um pássaro é sublime.
Um pássaro, veja só! Então existe perfeição?

Não.

Quando foi que vim ao mundo?
Foi numa tempestade assombrosa, pessoas cegas, gente ferida, anjos fustigados.
Vou pra frente do espelho: a rosa do meu cabelo é a mais bela, só eu posso tê-la.

Sexualmente eu era masculina.
Esporadicamente tu eras feminino.
Os nervos da gente errando, os sentidos errando...
Agora você virou novelo. Entra no meu bolso.
Amanhã vou aprender a transformar você num cobertor, porque o inverno dessa vez não vai perdoar.

Não vai haver perdão. Você pra sempre na minha pele, cobrindo-a.
Diante do mundo, nasci e vivo. Diante do mundo, com você por perto.
Foi num dia de vendaval.
Foi num dia de inquietação.
Foi num dia em que os astros se amavam.

A violência perdida no seu olhar.
Nunca mais vamos subir nas árvores.
Você deixa cair seu corpo fraco...
Na frente do espelho, do outro lado, quem é que me sorri?
*** ***
Este foi o primeiro texto em prosa meu publicado. A revista era um projeto experimental de meus amigos jornalistas, Arla Coqueiro & Gil Maciel. Na verde Maceió. Uma das cidades mais naturalmente belas do Planeta Terra. Não existe mais. A revista. Aguda Quase Grave. Gostava desse entre-lugar.
Deu saudades. Envelhecer é isso.


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