sábado, novembro 26, 2005

Obscuros, Salvador: Ed. Oiti, 2000, 117p.


OUTROS ELEFANTES

Sob o céu frio e cinza/ um impasse e poucas opções/ não há rosas no jardim/ e há tempos não se ouvem os rouxinóis/ se eu soubesse amar, eu cravaria/um espinho ao meu pobre coração/ vermelha então seria a rosa/ e entre as outras brilharia como o sol... (O rouxinol e a rosa: Herbert Vianna)

Quando você trouxe aquele pedaço de papel com a letra minguada dele, escrito duas horas antes do suicídio, eu estava, se não me engano, com uma taça de champanhe na mão. Se não estava bem, pelo menos eu tentava esquecer.
Não ele, que eu jamais esqueço. Mas a dor de sabê-lo morto antes de mim.
Sentada na beira da plataforma, olhando Itaparica de luzes acesas do outro lado, eu não via o vermelho das janelas, das portas, nem a vida azul-marinho do MAM e do Solar. Estava me fodendo pra tudo à minha volta. Era assim que estava, como você, aliás, já deve estar farto de saber.
O mundo baiano de exposições cretinas, quatro salas sem sequer um quadro capaz de me atrair... Me pergunte o que eu fazia naquele dia, olhando instalações e cores estupidamente vazias, que não saberia lhe dizer.
O mundo de azarações, roupas MTV, licores e vinho branco em garrafas azuis, passando, passando... Sempre muito atrás de mim. Do outro lado de mim, talvez. A essas alturas, os amigos se tornavam meras pessoas vagamente conhecidas; as pessoas meramente conhecidas tornavam-se estranhas; as estranhas transformaram-se em ratos, baratas, sapos.
Tua chegada a esses meios era a grande badalação. Principalmente porque, bonito pra caralho como sempre fora, todos em Salvador, quer fossem homens quer fossem mulheres, queriam com loucura te comer.
Mas eu não, eu estava de dieta rigorosa. À base de ódio e saudade mordaz dele, daquele de quem você trouxe a letra minguada num pedaço de papel.
– Ele deixou isso em meu casaco, um dia antes de morrer... Está endereçado a ti...
Apertei sua mão com desajeito. Meninas não apertam mãos de meninos, no máximo, beijam-se no rosto...
Na outra mão havia a taça de champanhe...
Pensei em segurá-la com segurança enquanto lia o bilhete que ele me deixara... Por que no bolso do seu casaco? Eu quis logo saber.
– Porque eu o emprestei na última vez em que saímos, ele sentia frio... Depois de seu suicídio, a família dele me devolveu o casaco sem lavar e lá estava esse bilhete...
Ardência na mão direita.
Com a esquerda segurei firme o papel.
Meu sangue escorrendo pelo pulso, manchando a camisa marrom de mangas compridas...
Ouvi você gritar:
– Ei, cuidado, você vai se machucar com essa taça...
Mas já não havia taça, os cacos cristalinos, tão finos são os cacos de uma taça de champanhe, entrando na carne cheia de nervos da minha mão direita.
Chorei sem sentir a pele, ouvindo você me pedir calma, mandar que as pessoas se afastassem, tirar devagarinho os pedaços de vidro da minha mão... Precisamos conversar, você dizia, olha só como ficou a sua mão...
Os amigos: meros conhecidos; os conhecidos: simples estranhos; os estranhos: ratos, baratas e sapos; se acotovelando às suas costas.
– Precisa de ajuda, Ângelo? – disse um dos rapazes que queria te comer. Moreno ele, de cavanhaque.
Uma mulher disse com desejo no olhar:
– Querido, você devia levá-la pra um posto médico, um hospital...
Um outro rapaz acrescentou:
– Se precisar, eu estou de carro aí...
Enquanto isso, sua voz era soberana:
– Não se preocupem, deixem-nos em paz, por favor...
E eu pensava desgraçadamente ferina: o cara é de mel, todos querem comê-lo.
Sim, eu sei. Amanhã, tudo já estará diluído outra vez dentro de mim. Mas, por enquanto, sinto as brumas da parede me tocando...
E penso nele, a obsessão dele em desenhar pássaros machucados e flores escorrendo pus e sangue. As obsessões estarão também engavetadas no cemitério?


Os óculos escuros escondem a feiúra das pessoas. Por isso mandei fazer óculos de graus de lentes escuras pra mim. Tenho 3,5 de miopia. E sempre quis ser bonitinha. Sempre quis porque não sou, entendeu? Assim, mesmo quando é noite, saio de óculos escuros pela cidade sem me importar com a dor de cabeça que resulta desse hábito. É que forço demais as vistas, as luzes da cidade são fracas pra minhas manias de esconderijo.


Andamos até o estacionamento e você repetia: será que ficaram muitos cacos em sua mão? Você está sentido dor? É perigoso isso, você pode pegar tétano.
Eu sei, e AIDS também, e gripe, e câncer no útero ou no pulmão.
– Por quê? Você fuma muito?
Oh, Deus.
Não sentia dor alguma. Só ódio, saudade dele misturada a um cair de temperatura no corpo. E sede. Ausência total de saliva na boca.
Cochilei dentro do seu carro, no caminho pro hospital, e tive uma miragem de pesadelo horrível: parece que sonhei que enlouquecia, tenho a sensação vaga de que todos me ignoravam na rua, eu babava e não sabia escrever nem falar direito.
Brincadeira estúpida da minha mente. Tenho medo de enlouquecer, então, quando durmo, ela inventa esses sonhos ridículos. Seria bom não dormir mais nunca, vou tomar um monte de café até estourar o cérebro.
– Café? Café não estoura cérebro de ninguém, menina.
– Não me chame de menina, não sou virgem há muito tempo.
Você riu. Me achou muito esquisita: triste e engraçada ao mesmo tempo. Será que podia tal combinação? Podia, eu disse, é tipo pessoas do espírito de naja. Naja? Você não entendeu. Ah, não vou explicar, leia Caio Fernando Abreu: Pequenas epifanias.
Você aproveitou o sinal fechado e fez uma coisa que jamais esperei de um homem: pegou agenda e caneta no porta-luvas e anotou o nome do autor e do livro que indiquei. Ainda perguntou a editora, se era fácil de achar etc. Fiquei pasma: será que você é mesmo um menino?
Então esmoreci. Parei de te achar apenas um ser do sexo masculino, de rosto e corpo bonitos.
Depois do atendimento no Hospital Santo Amaro, sai amortecida do teu lado. Sentindo formigamento na testa por causa da medicação que me fizeram tomar, e absolutamente nada na mão, pois me deram também anestesia local.
Resolvi te contar, entre uma chama de razão e outra de incerteza e letargia, a última vez em que falei com ele pelo telefone.
Tácio estava de meias brancas e sandálias havaianas pretas, calças de moletom cinza, blusa de mangas compridas azul-escuro, e havia descido minutos antes pro playground, pra fazer barulho com o martelo.
Vieram os homens do bem e de direito pra amarrá-lo. Isto é: seu pai, o irmão, um dos porteiros.
Eu estava cansada e, como sempre, fumava muito. Mas ele me ligou chorando, estavam lhe proibindo tudo, até de respirar. Então, esqueci o cansaço, peguei um avião e fui vê-lo.
Reclamava o tempo inteiro: ninguém dava mais brecha pra ele martelar.
Alguém vendeu ou jogou fora o seu martelo.
O jeito era assobiar, ele me dizia.
A mãe dele nos rondava, entrava no quarto com desculpas de chá e suquinhos. Na verdade, ela queria saber sobre o que conversávamos. Durante toda a nossa adolescência foi assim: ela nem ninguém da família aceitavam naturalmente nossa amizade. Sabe lá Deus o que achavam de mim. Ele sempre me afirmava: todos nessa casa têm ciúmes de ti, minha amada. Só o fato de ele me chamar assim – minha amada – sem nunca termos ido pra cama, já era muito estranho pra quem nos observava.
– Você sabe, na casa dele ninguém mais o agüentava...
– Mas, Ana Clara, vocês deviam estar morando juntos há muito tempo. Nunca entendi porque você não o tirava de lá.
Ah, isso é que não! O menininho bonito está me chamando de negligente.
– Seu imbecil, você não imagina o quanto tentei viver com ele, fugir da família e tudo mais...
– Nunca deu certo?
– Nunca. Ele próprio pedia pra voltar. Precisava da janela de seu quarto, precisava do cheiro da casa dos pais, precisava da paisagem de cortina dos prédios de São Paulo. Ele me dizia: sem isso, não sei desenhar. Desenhava o tempo todo. Quando não, pegava o martelo e começava a fazer barulho.
– Disso eu me lembro muito bem, inclusive do meu carro que ele arrasou todinho certa vez...
– Ele martelou seu carro?
– Você não soube?
– Não.
– Mas os pais dele pagaram o conserto.
– Às vezes, eu invejo o seu trânsito na casa dele. Pra mim nunca foi fácil. Aquele olhar de viés me atravessando. Se bem que, normalmente, mandava tudo pra puta que o pariu...
– Tenho sorte por isso?
– Não sei. Acho que sim. Eu gostaria que respeitassem minha amizade com ele, como respeitavam a sua... Mas não, achavam que eu o influenciava, que ele piorava com as minhas visitas...
– Bem, não sei se éramos tão amigos assim. Nós fomos colegas de colégio e até fizemos vestibular juntos, antes de ele enlouquecer. Mas acho que se havia alguém que Tácio considerava no mundo, era você, não eu.
– Eu sei.
Mas nem tudo que você diz é verdade, ele nunca enlouqueceu realmente, acho.
Sei disso pelo bilhete bastante claro que ele deixou pra mim: descobri, minha amada, que do lado de lá há milhões de martelos, por isso não perderei tempo. Me perdoe se estou indo sem você. Mas é por pouco tempo, certo? Estou te aguardando.
Repeti em voz alta o conteúdo.
Teus olhos esqueceram a direção e se voltaram pra mim vesgos:
– Você irá, Ana Clara?
Te olho nos olhos: tens uma expressão de ansiedade e espanto.
– Por que todos querem te comer, Ângelo? – pergunto à queima-roupa.
Riu, você riu alto e sem jeito. Que papo era aquele? Eu estava maluca?
Não, apenas percebia.
– Você é mesmo muito esquisita.
– Mas é verdade...
– De onde tirou essa agora?
– Eu observo bem.
Balança a cabeça em negação.
Cala-se.
O carro desliza pela Salvador mais deserta que já conheci.
Todos morreram, será?
Você quebra o silêncio:
– Por que estava tão sozinha na plataforma?
– Lembrei que era aniversário dele e nem em São Paulo nem em Salvador haveria parabéns...
– É verdade. Caramba, ele faria 31 anos hoje.
Olho pro relógio e você percebe:
– Ontem. – pronunciamos juntos – Ele faria 31 anos ontem.
Porque já passa de 2:00 da manhã.
Então pensei, só porque chovia e era muito, muito cedo, que ontem, no aniversário dele, não pude ficar em casa, saí sem rumo e de repente eu estava descendo a Contorno pra ver fotos e quadros no MAM. A pé, como sempre, e com medo de ser vítima de algum moleque mau.
Veja o que pensamos nesse tempo!
Andamos como bichos que se assustam com o aproximar de patas alheias.
Estou seca e choro sem querer.
Te peço pra parar numa banca de revista na Oceania, das que nunca fecham, e compro cigarros mais fortes do que os “frees” que andava fumando.
Te confesso: penso 24 horas em morrer. Não gosto da minha vida, não gosto de estudar nada, não gosto de trabalhar em nada, sou vulnerável às perdas, nunca esqueci o rosto de minha irmã sofrendo pra não morrer. Ela sim, era apegada à vida. Antes tivéssemos trocado de lugar.
Você diz que me entende, mas, se eu continuar falando assim, vou te fazer chorar.
Chorar? Acho graça. Meninos não choram, baby.
– Eu não sou menino – você diz sério – Há muito que já esporrei.
– Esporram demais, vocês – digo de escárnio.
– E o que quer que eu faça?
– Nada. Porque também dá no mesmo.
O caso é que ninguém viria me acordar de manhã com café e hibiscos e beijos fugazes no queixo, no nariz. E eu cansei de esperar.
O mundo está passando a faca afiada em nossos sonhos.
Você não vê.
Se preocupa em pôr o carro na garagem do teu prédio. O portão eletrônico se abre devagar pra nossa entrada.
Será essa madrugada de vento minha única verdadeira companheira?
Estou dentro do espaço amarelo-luminoso. É minha dor permanente. É só assim que sei viver.
Espero você reaparecer, acabar de fechar o carro, sorrir casualmente, apertar o botão do elevador.
Não me iludo. O máximo será: corpo e bater frágil de asas. Depois: a solidão.


Ah, o amor. Qualquer palavra serve pra dizer dessa alegria: a luz se acendeu de novo... e quem sabe, quem sabe: a porta nunca mais vai se fechar...[1]
Avanço em busca dos teus beijos, tenho um mar absurdamente revolto querendo todas as bocas sobre mim. Desde quando eu tinha essa sede de beijos? Ê Batumaré, é sempre bom voltar...
Derrubamos um vaso de rosas meio murchas que você usava em cima da mesa da sala.
Cuidado, amor, nada de machucar as flores já mortas...
Vamos pro seu quarto.
Porta estreita nos conduz.
Reparo nas fotos de bichos na parede: uma borboletinha roxa e negra presa numa rede imensa; um elefante levantando poeira num deserto cor de vermelho-carvalho. E os desenhos de Tácio: rosas podres, pássaros feridos.
Você emoldurou os desenhos dele e deixou um canto da parede, à esquerda de quem entra, só pra mostrá-los.
Era isso que ele fazia: terminava os desenhos e dava pros amigos. Eu tenho seis variações dessa mesma rosa cor de carne, metade afundando num charco, metade espirrando sangue.
Mas te abraço, te abraço forte pensando em quantas vezes o corpo dele me fugiu das mãos.
Minha boca mordendo a sua, nossas mãos se livrando das roupas, nossas peles colando-se uma à outra, você me largando de repente, tateando as gavetas, atrás de camisinhas. E eu lhe dizendo: quem se importa? É tudo uma questão de minutos, com AIDS ou com saúde, daqui a pouco, só o mínimo restará.
Nada me tira a presença disso: a fugacidade de seu sexo saindo de dentro de mim, se confundindo com o de Tácio. O sexo de Tácio, eu digo depois, já quando estamos no cigarro, que eu só conheci em descanso.
– E por quê? – você pergunta sem entender.
– Porque ele era impotente.
– Tácio?!
– Ele, claro.
– Totalmente impotente?
– Yes...
Você passa a mão no rosto e encara o teto:
– E eu pensava que ele era viado...


E depois, querido, depois te encontrarei do outro lado da verdade, entre o corpo e o desejo, essa linha invisível da paixão.
O toque entre os fios de cabelo e os pensamentos. Você exala e ri.
Bate lentamente a cabeça enquanto movimenta o corpo no escuro total. Tudo é separação e tristeza no movimento vazio do teu corpo que ontem amei.
Deita um segundo.
Pensa como pedra, se você fosse pedra, te levaria agora pra beira do mar... Veja que coisa bacana: eu te levando pra beira do mar.
Andarias nu no mar, estarias submerso.
Mas teu sangue é vivo e circula.
E, pelo telefone, você me faz saber que: se por acaso fosse Tácio, não desenharia mais espinhos no pobre coração das rosas, que vivem sofrendo a expulsão de líquidos que elas não têm...abandonaria as dores das rosas, devolveria as asas, os olhos, os pés e os bicos que ele vivia tirando dos pássaros, naquela criação doente que não conhecia leveza, só funduras e cicatrizes...
Te ouço ilesa, com o bilhetinho que você trouxe dele entre os dedos: faço um rolinho com ele, como se fosse cigarro.
Se fechar direitinho os olhos, posso vê-lo zanzando no espaço, afoito a segurar os martelos que passam feito borboletas bem perto de seu nariz.
O nariz dele.
Tácio vivia tão bem dentro do seu próprio mundo, pra que mexer nisso?
– Não sei se você se lembra, Ângelo, quando ele foi punk...
– A única coisa da qual me lembro, Ana Clara, é que ele não era feliz...
Isso é bem engraçado, meu querido: ele não era feliz!
E nós, o que somos?
Desligo o telefone te pedindo que esqueça os consertos nos desenhos de Tácio: ele nunca precisou de ajuda de ninguém.


Andar em cima de saltos enquanto a cidade silencia.
Aprendi a gostar de homens e esquecê-los às 3 da manhã.
Quando você chegar de novo em Salvador, vai me achar água gelada, escorrendo quieta, mais quieta que qualquer chuva fina, nesses dias que não são meus.
As luzes brigam lá fora pra ver se decidem que cor dar ao resto de noite, ao início da manhã. E é verde, branco-amarelado, azul-cintilante, rosa-néon, azul-metálico, lilás: a Bahia também se prepara pro natal.
Estudo idéias velhas sobre a economia nacional, trabalho 40 horas por semana e viajo sempre que posso pra praias distantes ou cidades ribeirinhas. Vou concorrer pela faculdade a uma bolsa de três meses na Espanha. Ando pedindo a todos que encontro: torçam por mim. Ouço sempre Os Paralamas, bebo e fumo pra caralho, agora peguei uma mania superboba: estou colecionando cartões-postais. Principalmente em preto e branco, que são os mais difíceis de se achar.
Mas sua voz ainda me vem vez em quando, e como naquela noite de amor, se mistura à dele, de Tácio, gritando dentro do sonho:
– Minha amada, você não vai acreditar, aprendi a pintar girassóis.
Ou:
– Não se mate, Ana Clara, por favor, não se mate. Eu venho te ver no verão.
Se é você quem me conta sobre a descoberta das flores, ou se é ele quem me pede pra não morrer, não sei. As vozes estão anoitecendo e amanhecendo comigo, as vozes nunca nítidas e sempre distantes, em meus tímpanos, não estancam jamais.

[1] Ê Batumaré: Herbert Vianna.
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Esse é o terceiro conto de Obscuros, meu segundo livro de contos, em edição Pocket, pela editora baiana Oiti. Obscuros só tem 4 contos: "Maria Madalena", "Cara de fumaça" (quase uma novela!), "Outros elefantes" e "Anankê". Eu ainda me chamava "Alessandra Leila".

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