quinta-feira, novembro 24, 2005

E já que falei em Ana Cristina Cesar, my mother...

... falo agora de my father, Caio Fernando Abreu. O link é pra um ensaio teórico, extraído de um capítulo da minha dissertação de mestrado (Letras-UFBA), sobre a loucura e a homossexualidade nos contos de Caio Fernando Abreu.

Sem dúvida alguma, Caio é o texto literário que mais me captura, entre todos os textos que nos estendem a rede e nos quais nos enredamos, ao longo da vida.

Só quem já teve um dragão em casa pode saber como essa casa parece deserta depois que ele parte. Dunas, geleiras, estepes. Nunca mais reflexos esverdeados pelos cantos, nem perfume de ervas pelo ar, nunca mais fumaças coloridas ou formas como serpentes espreitando pelas frestas de portas entreabertas. Mais triste: nunca mais nenhuma vontade de ser feliz dentro da gente, mesmo que essa felicidade nos deixe com o coração disparado, mãos úmidas, olhos brilhantes e aquela fome incapaz de engolir qualquer coisa.
(Caio Fernando Abreu: Os dragões não conhecem o paraíso)

Conheci a literatura de Caio em 91, quando morava, por acidentes estranhos da vida, em Maceió. Arla Coqueiro, que veio a ser uma grande amiga depois, me emprestou os livros Pedras de Calcutá e Morangos mofados. Li os dois ao mesmo tempo e jamais fui a mesma. Explico: morava muito perto da praia em Maceió (Ponta Verde), e naquela época de "deprê" total (eu estava no fundo do poço), tinha o hábito de ir, de manhã cedo, andar na areia, tomar banho de mar, e depois, pra evitar o famoso suícidio ainda jovem, ficava intercalando a leitura de algum livro (geralmente de poemas, mas nem sempre) com o olhar o horizonte, o movimentos dos pescadores e dos barcos (sim, como naquela canção do Jards Macalé). Então, levei os dois livros do Caio numa dessas manhãs, porque não sabia por onde começar. Aleatoriamente, abri Pedras de Calcutá e li um conto chamado "Uma estória de borboletas". Um espanto. A história de um casal de rapazes que tiram borboletas do cabelo, primeiro um, depois o outro, enquanto enfrentam a loucura do mundo ao redor. Não, estou fantasiando. Não é assim. A história da diferença que precisa ser contida em camisa-de-força. Também não. Não é só isso. A história de dois rapazes que se encontraram, se amaram e se perderam na diluição do cotidiano a dois; que se isolaram na sua individualidade e enlouqueceram; mas se reencontraram depois, num hospício, quando precisaram lutar, juntos, pelo direito à diferença. Bem, mas não é só isso. Leiam o livro, leiam o livro, não há possibilidade de resumo, repasses. Vejam por si.

Anos mais tarde, na minha dissertação de mestrado, dediquei um capítulo a esse conto. Todavia, não cheguei a esgotar o encanto-estranho que ele me traz: todas as vezes que o leio, quero dedicar-lhe novos capítulos. O segundo conto foi "Além do ponto", também escolhido aleatoriamente no livro Morangos mofados. Outro espanto. Esse acompanhando, me lembro, de lágrimas (nessa época eu chorava muito, depois o choro secou). A história da eterna busca humana... de amor? De Deus? De si mesmo? Do complemento? Do desconhecido? De acolhimento? De compreensão? Um homem corta a cidade, a pé, bêbado, maltrapilho, dente cariado, sem dinheiro, molhado de chuva, dentro da chuva, em busca de uma porta que não quer abrir. Ainda? Nunca? Por enquanto? Ele anda e bate na porta. Bate, bate, incessantemente. Espera e desamparo. Solidão e desejo. Busca e vazio. E o que é melhor: tudo escrito na melhor linguagem que a literatura brasileira já produziu, prosa e poesia, poesia e prosa.

This my father. Depois dele eu tive que destruir três pastas com mais de 300 poemas e narrativas. Pensava que não poderia escrever coisa alguma depois de ter lido-o, porque ele já escrevera o que eu ambicionava escrever, há anos, sem conseguir. Engraçado que no mesmo dia em que destruí as pastas, acordei de madrugada tendo sonhos estranhos: no sonho eu estava escrevendo. E no sonho eu era exatamente ele. Porém, eu não o conhecia. Isto é, não conhecia a cara dele. O que nem é preciso, pensando bem.

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